24 de julho de 2020

Sharhabil Ahmed “The King Of Sudanese Jazz” (Habibi Funk, 2020)

No Sudão, foi há coisa de um ano que as vozes acordaram daquela espécie de coma induzido em que a única aproximação possível à música era a que derivava do tajwîd (isto é, da leitura do Corão no sotaque de Maomé). Desde então, não cessam os milagres: o executivo do recém-empossado Abdallah Hamdok incluiu na sua composição duas mulheres (que já podem ir de calças para o escritório, se quiserem); a mutilação genital feminina foi, enfim, criminalizada; a apostasia, descriminalizada; o país, esse, galgou posições no Índice de Liberdade de Imprensa; e a reforma do código penal em curso até permite que cristãos se possam encontrar ao final da tarde para beber um copo! De facto, consagrado a gravações de Sharhabil Ahmed na década de 60, nomeadamente às que coincidiram com o regime democrático, entre 1964 e 1969, este “The King of Sudanese Jazz” não podia ter chegado em melhor hora. Curiosamente, segundo o seu editor, Jannis Stürtz, já vem tarde – o problema, conta, em notas de apresentação, é que demorou cinco anos a encontrar registos de som que pudesse utilizar como referência (aos quatro excecionais temas que se conheciam de Ahmed – de Sharnbil and his Band, alguns – somou outros três, não menos extraordinários). Provêm de um tempo em que um punhado de rebeldes trocou as liras e os alaúdes pelas guitarras elétricas e os baixos, as pandeiretas por tarolas e pratos de choque, os coros por saxofones e trompetas e, pasme-se, não fez, com isso, que o Nilo Branco e o Nilo Azul se deixassem de encontrar em Cartum – ao jeito de Mohammed Rafi, na mesma altura, em ‘Jaan Pehechan Ho’ (um tema de rock’n’roll tão básico e bizarro que só podia vir de Bollywood). Aliás, alguns dos recursos então em voga no ocidente são aqui reproduzidos de modo tão caricato que se diria virem pôr a nu um paradoxo elementar: não são os instrumentistas sudaneses que estão a interpretar mal Ray Charles, digamos; foi Ray Charles que se traiu e absorveu menos bem na sua produção os ensinamentos da música africana. Ouvindo “The King of Sudanese Jazz”, é bem capaz de ser assim.

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