No Sudão, foi há coisa de um ano que as vozes
acordaram daquela espécie de coma induzido em que a única aproximação possível
à música era a que derivava do tajwîd (isto é, da leitura do Corão no sotaque de Maomé). Desde então, não
cessam os milagres: o executivo do recém-empossado Abdallah Hamdok incluiu na
sua composição duas mulheres (que já podem ir de calças para o escritório, se
quiserem); a mutilação genital feminina foi, enfim, criminalizada; a apostasia,
descriminalizada; o país, esse, galgou posições no Índice de Liberdade de
Imprensa; e a reforma do código penal em curso até permite que cristãos se
possam encontrar ao final da tarde para beber um copo! De facto, consagrado a
gravações de Sharhabil Ahmed na década de 60, nomeadamente às que coincidiram
com o regime democrático, entre 1964 e 1969, este “The King of Sudanese Jazz”
não podia ter chegado em melhor hora. Curiosamente, segundo o seu editor, Jannis Stürtz, já vem tarde – o problema, conta, em notas de apresentação, é
que demorou cinco anos a encontrar registos de som que pudesse utilizar como
referência (aos quatro excecionais temas que se conheciam de Ahmed – de
Sharnbil and his Band, alguns – somou outros três, não menos extraordinários). Provêm
de um tempo em que um punhado de rebeldes trocou as liras e os alaúdes pelas
guitarras elétricas e os baixos, as pandeiretas por tarolas e pratos de choque,
os coros por saxofones e trompetas e, pasme-se, não fez, com isso, que o Nilo
Branco e o Nilo Azul se deixassem de encontrar em Cartum – ao jeito de Mohammed
Rafi, na mesma altura, em ‘Jaan Pehechan Ho’ (um tema de rock’n’roll tão básico
e bizarro que só podia vir de Bollywood). Aliás, alguns dos recursos então em
voga no ocidente são aqui reproduzidos de modo tão caricato que se diria virem pôr
a nu um paradoxo elementar: não são os instrumentistas sudaneses que estão a
interpretar mal Ray Charles, digamos; foi Ray Charles que se traiu e absorveu
menos bem na sua produção os ensinamentos da música africana. Ouvindo “The King
of Sudanese Jazz”, é bem capaz de ser assim.
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