É verdade: como o mais gasoso em Lester Young, oceânico em John Coltrane, mucoso em Sonny Rollins, dá voz a um nicho em que se reduz dióxido de carbono ao estado líquido e que se diria existir exclusivamente na sua traqueia. Aqui, da altura em que despontou, surge ‘Dream Weaver’, em que Lloyd, Eric Harland (bateria), Reuben Rogers (contrabaixo), Gerald Clayton (piano) e Julian Lage (guitarra elétrica) parecem trocar os respetivos instrumentos por espanta-espíritos – e, como um médium, Lage vê-se possuído pelo fantasma de Gábor Szabó, que tanto tocou o tema. Do alinhamento constam igualmente versões oraculares de ‘Requiem’, ‘La Llorona’ e ‘Part 5, Ruminations’ – na sua discografia, estreados em 1992, 2010 e 2017, e que, agora, aparecem quase com tantos borbotos quanto os que tem o casaquinho de malha com que Lloyd subiu ao palco, apesar de ele não se querer sentir demasiado confortável, claro. “Isto são veículos para explorar o desconhecido, para aprofundar o mistério”, explicava, em junho, à “Jazzwise”. “Sou um sonhador, e a música é o que me foi dando de algum modo a inspiração e o consolo. E eu ainda estou numa missão: quero partilhá-la, mesmo se, com o confinamento, não o possa fazer. Vivemos tempos de peste”, dizia ele. Toca ‘La Llorona’ como que a meditar, em silêncio, e nunca a letra da canção fez tanto sentido: “Dicen que no tengo duelo, Llorona/ Porque no me ven llorar/ Hay muertos que no hacen ruido, Llorona/ ¡Y es más grande su penar!”
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
13 de novembro de 2020
Charles Lloyd “8: Kindred Spirits, Live From The Lobero Theatre” (Blue Note, 2020)
Se acham que o resultado das eleições
norte-americanas demorou muito a sair, fiquem a saber que esta edição de “8” saiu
em finais de fevereiro e só em finais de outubro chegou ao mercado português, após
uns apropriados oito meses. Para os que possuem uma relação talismânica com os
discos de Lloyd, é possível que o concerto se tenha tornado na mais longa hora das
suas vidas, mas “cem mil anos e sessenta minutos são uma coisa só”, já dizia
Rumi, há oito séculos – e se desta vez Lloyd não tocou ‘Tales of Rumi’, é o que
se pressente, sempre que decide pegar no saxofone. Aliás, por fazer um pretzel com a curva do tempo, este
título até devia vir na horizontal, como o símbolo do infinito. Porque, afinal,
é de matemática que se trata: nomeadamente das contas de aniversário, com “8” a
registar a atuação agendada para o dia em que Lloyd assinalou 80 anos, a 15 de
março de 2018 – portanto, leia-se “8”, de oito décadas. Como ele dizia no
documentário “Arrows into Infinity” (2013): “Sou de 1938, [do signo] de Peixes.
E, em Memphis, onde nasci, ocorreram as maiores cheias na história da região mesmo
antes de eu vir ao mundo. E eu segui na onda.”
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