27 de novembro de 2020

Doug Carn “Spirit of the New Land” (Black Jazz, re. 2020) & The Awakening “Hear, Sense and Feel” (Black Jazz, re. 2020)

Tendo em conta as notícias, e passando em revista o punhado de títulos da Black Jazz que a Real Gone Music acabou de colocar no mercado, seria de esperar que as atenções se desviassem para “2nd Wave” (1975), de Roland Haynes. De facto, neste contexto, e aos olhos de um supremacista branco, por exemplo, quem se mostrasse capaz de conjugar a vivência mais sofrida com a memória mais profunda, quem apelasse à reorientação radical do papel do invidíduo na sociedade e em simultâneo se batesse pela transformação sistémica da economia, teria de ser visto como uma virose. E poucos discos articularam tão bem a segunda vaga do nacionalismo negro quanto “Spirit of the New Land” e “Hear, Sense and Feel”, frutos de uma ação “gerida por negros, dirigida a negros”, conforme anúncio na “Billboard”. Ambos de 1972, eram um livro de cânticos para gente destituída, desfavorecida, desprotegida e desprivilegiada, condenada, como se lia na “Bíblia”, a errar pelos desertos, montes, covas e cavernas da Terra, mesmo sem ter pecado: “Ergue-te e brilha, gente bonita/ A tua hora chegou/ Regressa à religião antiga/ Liga-te à visão do que passou”, ouve-se num; “Alegrem-se/ Uma nova era começou/ Uma era de beleza, realização pessoal e encanto”, escuta-se no outro.

No fundo, era como se tentassem compor o hino para aquela República da Nova Áfrika de que na altura se falava, espécie de terreno virgem e inexpugnável em que encontraria a liberdade quem recusasse a herança da escravatura. Mas os discos pouco têm de panfletário – a principal revolução que desencadeiam é no cânone musical do ocidente e a herança que recusam é a do formalismo, pondo em prática protocolos de descontinuidade com a estética dominante. Neste jazz de abandono extático que se diria dançar com os corpos celestes, nomes como Jean Carn, George Harper, Garnett Brown, Earl McIntyre, Charles Tolliver e Alphonse Mouzon, no primeiro, e Ken Chaney, Ari Brown, Frank Gordon, Steve Galloway e Reggie Willis, no segundo, para melhor fitar o firmamento, cercavam-se de apitos, sinos, pífaros e chocalhos e aperfeiçoavam um idioma que remontava à tomada de consciência da espécie – consigo, se não estava a humanidade inteira, devia ter estado.

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