Porque, na arte, o único futuro que
importa é o irrealizável, esse lugar de que vêm agora falar Jarrett, Peacock e
DeJohnette pode bem ser aquele, edénico e inatingível, feito de paz, sossego e
perdão, que, em “West Side Story”, Stephen Sondheim e Leonard Bernstein prometeram
a Tony e Maria. E, quiçá por essa razão, não admira que, de forma submissa e
consternada, primeiro, os membros do trio visitem ‘Somewhere’ como uma morada
de exílio que existe na mente – ainda que não renunciem por um instante ao
sustentado idealismo que as suas interpretações ao longo dos anos patentearam –
para, depois, ao fim de seis minutos, lhe acrescentarem uma coda de cerca de treze,
batizada de ‘Everywhere’, que não só representa a efetiva evasão das coercivas características
da balada, como, simbolicamente, transporta a ação para um singular endereço edificado
por três décadas de gravações e digressões em conjunto. Trata-se
de uma espantosa articulação – mas perfeitamente exemplificativa dos
definitivos contornos que adquirem estas formulações assim que despontam –, redigida
com precisão segundo preceitos recorrentes: previsibilidade rítmica,
desenvolvimento temático, arabescos melódicos desenhados no centro de uma
exaustiva exploração do campo harmónico, acumulação de referências estilísticas,
cromáticos floreados a adornar variações de dinâmica – tudo, com frequência, ao
serviço do escatológico martírio evocado, noutro contexto, pelos hinógrafos
cristãos. O que, temperado em contraponto pelas caucionárias interjeições
vocais do pianista, de uma deliberação taticamente extática, tanto mistifica o
material de partida quanto o de chegada, dispondo as mais ritualistas
propriedades do grupo em redor de um conceito muito simples: o do privilégio da
invenção.
Mas, sempre que o assunto é Jarrett, e por hipotética subserviência ao seu
génio, persiste a tentação de anexar toda a sua produção à mesma entrada
enciclopédica – solística ou coletiva, enquanto solipso improvisador ou exibicionista
compositor sinfónico, sóbrio intérprete de Bach e Shostakovich ou proponente de
contorcionistas exercícios em
palco. Só que a verdade é que o impressionante compêndio de
vinte álbuns tão anacronicamente consagrados por este trio ao mais flagrante
cancioneiro norte-americano de antanho – neste concerto captado em Lucerna, em
2009, ‘Solar’, de Miles Davis, ‘Somewhere’ e ‘Tonight’, igualmente retirada de
“West Side Story”, provêm dos anos 50, mas os restantes temas coligidos, de
“Between the Devil and the Deep Blue Sea” a “I Thought About You”, têm origem na
década de 30 – provou ter vida própria e, com o passar do tempo, suportar, até,
a paradoxal teoria de que é no seu âmbito específico que melhor se evidencia certo
tipo de particularidades contrárias, por um lado, à indulgência com que se
constituiu o vasto legado do seu fundador e, por outro, ao conformismo que, em
condições normais, suscita a prática de quem, podendo entregar-se a criações
originais, se dedica antes a um repertório canónico. De facto, o que se distingue
desde 1983 – de “Standards, Vol. 1” e “Standards, Vol. 2” a “The Cure” (1990), “Bye
Bye Blackbird” (1991) ou à sequência de sete registos, todos ao vivo, lançados
entre 1999 e 2002 – é um mester em vias de extinção: o do músico que se
subordina à música. Um percurso mais recentemente assombrado pela batalha que Jarrett
travou com a síndrome de fadiga crónica que o dilacerava. Nessa medida, esta
formação manifesta-se cada vez mais como um catártico postulado e um humilde
testemunho de sobrevivência. Como procedente de um restaurativo lugar, digno do
conto de fadas de que fala também ‘Stars Fell on Alabama’, outra das canções
aqui incluídas, habitado – respetivamente, aos 68, 78 e 70 anos de idade – por
Jarrett, Peacock e DeJohnette. Um lugar instável e eterno, que reside apenas no
coração do jazz.