27 de julho de 2013

Sugestões de Verão

Buika “La Noche Más Larga” (Warner, 2013)
“Frente a las olas del mar y bajo las estrellas yo sueño con ella”, clama desamparadamente Concha Buika, lembrando, com extravagante sentido de espetáculo, que a liberdade sexual só multiplica o número de vínculos ao amor. Depois, com os arrebiques da praxe e recorrendo ao mais noturnal flamenco, visita Brel, Billie, Lecuona, Abbey Lincoln e, com invulgar fatalidade, os seus próprios estados de alma.

Fafá de Belém “Três Tons de Fafá de Belém” (Universal, 2013)
Anos antes das hiperglicémicas baladas e das bamboleantes lambadas, Fafá cantou um país de infinita humidade e enigmática geografia, de pau-santo e mata virgem, grávido de tanta periferia. Nos álbuns aqui reunidos – “Água” (1977), “Banho de Cheiro” (1978) e “Estrela Radiante” (1979) – estreou Milton, Gonzaga Jr., Hime, Lins ou Dominguinhos e canonizou a dupla Paulo André e Ruy Barata. Verão eterno.

Femi Kuti “No Place for My Dream” (Naïve, 2013)
É um sinal dos tempos que o regresso do filho mais velho de Fela Kuti – também a palcos portugueses, atuando hoje à noite no FMM de Sines – seja marcado pela contradição que vincula esta mensagem titular à banda Positive Force. Mas tal incoerência deve ser vista como sintoma do mais empático humanismo, pois o que Femi aqui propõe é um frenético afrobeat capaz de enlaçar atos de rebelião à escala global.

Jupiter & Okwess International “Hotel Univers” (Out Here, 2013)
O áspero barítono de Jupiter Bokondji indicia circunspeção. E a verdade é que não haverá quem cante isto exatamente desta maneira: “Foi preciso muito tempo para passar da colonização à independência, mas daí à dependência bastou um pequeno passo” (em ‘Congo’). Ou seja, continua o desalinhado protagonista do documentário “Jupiter’s Dance” a cantar a verdade das ruas de Kinshasa – o mundo é o seu gueto.

Sílvia Pérez Cruz “11 de Novembre” (Universal, 2012)
“Un mundo feliz/ baños en el mar/ sueños de cristal/ azul”, associa-se em ‘Iglesias’, num refrigério eminentemente redentor. Em ‘Não Sei’, num português tão circunstancial que vira abrasileirado, canta-se literalmente “quero aprender que é o que eu tenho que fazer/ para conseguir te renascer” à memória de um pai desaparecido. Fantasista e polímate, “11 de Novembre” é um zéfiro de flores de laranjeira.

Aki Takase “My Ellington” (Intakt, 2013)
A pianista japonesa visita Ellington, vasculhando pelos escombros de edifícios outrora tão deslumbrantes quão ‘Solitude’, ‘The Mooche’, ‘ I Got It Bad and That Ain’t Good’ ou ‘Caravan’, e revela o último dos impressionistas. Em ‘Fleurette Africaine’ cita ‘Nhemamusasa’, um tradicional dos Shona, no sul de Moçambique tocado à mbira, e prossegue por este terreno, aquoso e humífero como poucos.

Harris Eisenstadt September Trio “The Destructive Element” (Clean Feed, 2013)
Gravado em Portalegre e com um desenho da capa quintessenciado pela paisagem alentejana, este disco fala de grandes espaços, ainda que numa liturgia iniciada num rincão europeu e devotada à adversidade. E a verdade é que, com ele, e com os maviosos Ellery Eskelin ao saxofone e Angelica Sanchez ao piano, o baterista canadiano se afirma como um dos mais elegantes e indispensáveis formalistas do jazz atual.

Lucian Ban/Mat Maneri “Transylvanian Concert” (ECM, 2013)
Gravado ao vivo no centenário Palácio da Cultura de Targu Mures, no coração da terra ‘para além da floresta’, este concerto é um tratado de luz e sombra. Maneri, arredio e travesso violetista, mantém-se um excêntrico negociante nas margens da tonalidade, enquanto o pianismo de Ban – natural da próxima Cluj, mas há muito a residir em Nova Iorque – o corteja com blandícias e transcendentes emanações.

Madeleine Peyroux “The Blue Room” (Emarcy, 2013)
Desde “Dreamland” que Peyroux vem dissecando o cancioneiro norte-americano a partir da sua perspetiva de expatriada – embora se deva aqui enaltecer antes a deslocação temporal, na sincrética evocação de Piaf, Bessie Smith e Patsy Cline que promove. Agora dedica-se à recriação e atualização de um arquetípico dissolvente de identidades: “Modern Sounds In Country and Western Music”, de Ray Charles.

Beethoven: Pathétique, Moonlight, Appassionata - Yundi (p) (Deutsche Grammophon, 2013)
Aguardou por entrar nos 30, o mais jovem vencedor de sempre da Competição Internacional de Piano Frédéric Chopin, antes de abordar o Beethoven que todos conhecem. E o que se pode dizer é que, numa época em que os recitais de música clássica se transformaram em curadoria de arte, com intérpretes a manifestar histericamente um insólito grau de ecletismo, o seu modo adnato é mais refrescante que anacrónico.

Britten: Orchestral Works - Donohoe (p), Isserlis (vlc), Berglund, Järvi, Knussen, Marriner, Rattle (d)
(EMI, 2013)
Proliferam baús dedicados à obra de Britten, neste ano em que se celebra o centenário do seu nascimento: a Decca acaba de editar um integral com 66 CD, enquanto a EMI, de forma inversa, mais digerível e em versões de primeira apanha, vai desmontando tematicamente a “Collector’s Edition”, de 37, que havia lançado em 2008. São dez horas para se compreender um século, e um homem, o que não é tarefa menor.

Debussy: Complete Music for Piano Duo - Massimiliano Damerini, Marco Rapetti (p) (Brilliant, 2013)
De 1880 a 1915 – de “Symphonie” a “En Blanc et Noir”, ou melhor, do ano da patente da lâmpada de Edison até ao da primeira chamada telefónica transcontinental de Bell – o que aqui se ouve é um distanciamento do mundo. Debussy – em “Lindaraja”, na transcrição de “La Mer” ou nos “Épigraphes Antiques” – recolhendo para a sombra, da qual deve “aparentar emergir a música”, como o vento quente nas noites de verão.

Dowland: Lachrimae - Thomas Dunford (alaúde), R. Hughes, R. van Mechelen, P. Agnew, A. Buet (v) (Alpha, 2013)
“Todos os dias/ o sol que me empresta o brilho/ ao entardecer me causa suspiro” ouve-se em ‘Come Again’, naquela melancolia estilizada do Período Isabelino que, mais tarde, da pena do próprio John Dowland (1563-1626), inspiraria, numa ária aqui interpretada, o trocadilho ‘Semper Dowland, Semper Dolens’, e é o primeiro amor de verão que se chora. Estreante, Dunford é delicado e sereno como o crepúsculo.

Mozart: Keyboard Music, Vol.4 - Kristian Bezuidenhout, pianoforte (Harmonia Mundi, 2013)
A partir da exploratória “Sonata em Sol maior” (K. 283), o pianista sul-africano traduz o próprio processo de habituação de um prodígio aos comandos de um novo instrumento. Mozart vai desvendando as possibilidades expressivas de um teclado sensível ao toque até que, na imprevisível “Fantasia em Ré menor” (K. 397), tudo surge já integrado naquilo que mais lhe interessava: a liberdade da imaginação.

Vivaldi: Concertos Para Violino, Cordas e Baixo Contínuo - Giuliano Carmignola (vln), Accademia Bizantina, Ottavio Dantone (d) (Archiv, 2013)
Não podia aqui faltar aquele que, com as “Quatro Estações”, há quase 300 anos criou a definitiva banda-sonora estival. Para mais em versões originais não emendadas (RV 281 e RV 187) e incluindo uma primeira gravação (RV 283). Carmignola é o apaixonado decantador destas páginas, desta vez de poda tardia e de duradouro buquê, evanescente mas obstinado dialogante com tão matizadas dinâmicas orquestrais.

John Zorn @60 no Jazz em Agosto



 (crédito: Chad Batka para o New York Times)
Há uma imagem que – transferida para a área da música – se cola à pele de John Zorn desde meados dos anos 80: a do insone viajante noturno, de apetite voraz, funambulesca moral e distorcido sentido de justiça, que manobra aguçando instintos predatórios pelas artérias da cidade de Nova Iorque numa espécie de torpor metafísico – um pouco ao jeito do Travis Bickle, de “Taxi Driver” –, fixando-se patologicamente na dissimulada observação da degradação urbana e enleando numa psicótica teia mental os detritos que lhe entopem veias, telas e vielas. A produção dos Naked City – o grupo que, em 1988, formou com Bill Frisell, Fred Frith, Wayne Horvitz e Joey Baron – representará o ápice de tal perspetiva, afetada que está não tanto pela caleidoscópica e compendiosa reconfiguração de tantos livros de estilo do fenómeno musical, mas, antes, pela sua sujeição a um primado que estabelece a validade estética de qualquer fonte de ruído na organização desse mesmo fenómeno. Na altura, quando se tinha de ‘explicar’ o impossivelmente denso som de Zorn recorria-se àquela frase que se ouve em “Spillane” (1987): “Sinto-me como se tivesse fumado um maço inteiro de cigarros e me esquecido de deitar o fumo para fora”. Se “Naked City”, o filme que, em 1948, Jules Dassin realizou a partir do homónimo álbum fotográfico de Weegee, rematava que entre as “oito milhões de histórias na cidade nua”, tinha apenas contado “uma delas”, já a banda de Zorn parecia disposta a relatá-las todas. Numa entrevista do período – incluída pelo seu condutor em “American Composers – Dialogues on Contemporary Music” –, Edward Strickland mencionava essa estrutura, elíptica e elidível, aludindo a um desmembramento dionisíaco, e Zorn respondia: “Stravinsky trabalhava em blocos; Ives também se interessava por bizarras justaposições; e, claro, tudo o que saía da televisão era assim. […] Cria-se algo que recolhe elementos do rock, do blues, da música clássica, do folclore, e que se reúne filmicamente, como no ato da montagem. [...] De uma maneira que levanta mais questões do que gera respostas”. A revista Wire de março de 1989, numa referência a Zappa, essoutro enciclopédico conceptualista, chamava-lhe “jazz do inferno” e incluía este depoimento: “Para a semana vamos [com os Naked City] ao festival de jazz de Montreux, mas a cena do jazz pode ser uma chatice. Acho que somos convidados para tocar em festivais de jazz porque os organizadores precisam de alguém para agitar as águas e gerar controvérsia – é esse o meu papel”.

Um quarto de século mais tarde, não tendo por um segundo abrandado o seu acelerado metabolismo, e mantendo uma certa aversão juvenil ao mundano, nem Zorn é já esse necrófago turista do apocalipse, nem se pode dizer que dependa estritamente de polémicas para fazer chegar a sua mensagem ao grande público ou, muito menos, que – num processo análogo àquele que levou a geração do minimalismo dos lofts até aos auditórios das elites – não é precisamente em festivais de jazz que encontrou o habitat natural para as suas mais transversais apresentações. Sim, permanece um hábil contorcionista, tentado pelo maximalismo, bordejando, quiçá oportunisticamente, diversas tangentes culturais, promovendo tão ecléticos quão fortuitos curto-circuitos artísticos, expandindo-se como um organismo vivo essencialmente adaptável ainda que eminentemente autónomo. Mas, embora hemorrágica, obsessivamente hermética e ostensivamente arcana, a verdade é que a sua emissão assume hoje contornos canónicos e de paradigmática relevância no seio da arte de vanguarda: só nos últimos quatro anos, e sempre através da editora que fundou em 1995, a Tzadik, publicou cerca de 35 discos com obras suas. E, ainda que levando a costumeiros paradoxos – são perfeitamente singulares e excêntricas construções cuja disposição serial torna menos distintas; possuem características demasiado intersticiais para suportar a sua contínua catalogação temática, etc –, é inegável a excelência interpretativa de que se revestem. Em novembro de 2011, Zorn falava sobre o seu percurso ao sítio Altered Zones: “Posso seguir a minha inspiração desde a ideia inicial até à escrita, ao ensaio, à atuação, gravação, mistura, masterização, design, fabrico, lançamento e distribuição de determinado projeto, e em todas essas etapas estou rodeado por um coeso grupo de amigos, ao meu lado há 10, 20 ou 30 anos. […] Mas a insulação deu-se por necessidade. Foi a única forma que arranjei para me certificar de que aquilo que queria fazer ia para a frente”. Há muito que a retórica de Zorn, num particular em que se incluirá o seu entendimento do judaísmo – incontornável desde a fundação do quarteto Masada, em 1994, não obstante a rejeição pública da ortodoxia sionista –, se socorre do isolacionismo. No livreto da caixa “The Parachute Years” – a antologia com insólitos registos captados entre 1977 e 1981 – escrevia com irónico fatalismo acerca de “uma triste e solitária vida de alienação e exílio autoimpostos”, e no documentário de Claudia Heuermann, “A Bookshelf On Top of The Sky”, afirmava: “Para mim, um artista é alguém separado da sociedade que deve seguir a sua própria visão sem se comprometer ou sofrer influências destas nefastas forças que nos rodeiam e que querem a todo o custo impedir que uma voz que seja venha dizer: o mundo pode ser um local diferente”.

E outra coisa – que não a expressão de todas essas coisas diferentes que, segundo Zorn, o mundo pode ser – não promulga a série de eventos “Zorn@60”, uma itinerante e plural digressão por espaços europeus, asiáticos e norte-americanos que, a pretexto do seu sexagésimo aniversário (efetivo a 2 de setembro), lhe traça o mais ambicioso retrato de que há memória. Ao Jazz em Agosto leva alguns dos seus mais antigos e valorosos cúmplices – Marc Ribot, Jamie Saft, Trevor Dunn, Kenny Wollesen, Joey Baron, Cyro Baptista e Ikue Mori – para três noites temáticas: sexta, dia 2, com o charmoso e exótico repertório de The Dreamers, destila uma talismânica inspiração em Baxter, Denny ou Lyman, sábado, 3, recupera parcelas emblemáticas do seu trabalho em bandas-sonoras acompanhando a projeção de filmes de Joseph Cornell, Maya Deren, Wallace Berman e Harry Smith – tratam-se possivelmente dos fascinantes “Rose Hobart” (1936), “Ritual in Transfigured Time” (1946), “Aleph” (1956-1966) e “Oz: The Tin Woodman's Dream” (1967) – e domingo, 4, sobe ao palco com Electric Masada, a sempre extática e amplificada revisitação de ilustres páginas do seu cancioneiro de extração folclórica. Paralelamente a isso, ao final da tarde de sábado e domingo, exibe-se o DVD “John Zorn’s Treatment for a Film in Fifteen Scenes”. Não se sabe o que ficará de tudo isto, mas talvez não haja pressa. Afinal, como contava no número de maio de 2009 da Jazz Times, Zorn não vai a lado nenhum: “O que faço requer muitos sacrifícios, até em termos pessoais. Uma pessoa com filhos tem de lhes dedicar pelo menos metade da vida. Já no meu caso os meus filhos são as composições, os discos, as atuações, e a minha família é o meio musical. Por isso não é assim tão estranho fundar o Stone ou a Tzadik. Estou aqui para ajudar a mesma comunidade que sempre me alimentou. Não vejo televisão nem leio revistas ou jornais. Concentro-me inteiramente na minha arte. É essa a minha prenda para o mundo; é para isso que estou neste planeta”.

20 de julho de 2013

I Dodici Giardini – Cantico di Santa Caterina da Bologna (Arcana, 2013)




La Reverdie, Adiastema

Descreve Silvia Evangelisti, autora de “Nuns”, uma história da vida conventual: “Franzino, com a tez enegrecida pelo passar dos séculos, o corpo incorrupto de Catarina, rodeado por relíquias e iluminuras, encontra-se no interior de uma capela do mosteiro de Corpus Domini, em Bolonha. Da Santa, as freiras conservam crucifixo, violeta e breviário e exibem retábulos alusivos à sua prolífica série de êxtases, profecias e milagres”. Nascida há 600 anos, Catarina Vigri (1413-1463) foi uma protagonista crucial do movimento da Observância. Muito jovem, exemplarmente educada enquanto dama de honra da filha do marquês de Ferrara, liga-se à regra de Santa Clara de Assis e ingressa numa abadia. Reflete cruamente sobre provações e incertezas vocacionais e sensualmente acerca de tentações e penas interiores. Deixa precisas instruções quanto à póstuma reprodução e circulação dos seus tratados, que chegaram a Portugal, e, com ardor missionário, afirma em “As Sete Armas Espirituais”: “Escrevo, por recear a repreensão divina que sobreviria à minha recusa em partilhar aquilo de que tantos devem beneficiar”. Livia Caffagni, fundadora de La Reverdie, examinou a sua prosa manuscrita, as suas glosas e versículos e, além do óbvio frenesi salvífico, detetou o recorrente tema das núpcias eternas, que, já abadessa, Catarina diariamente cantava. Concentrando-se em “Os Doze Jardins”, beatífica redação de 1433, organiza aqui algumas das laudas prediletas da Santa em torno da ideia da itinerância da alma até à união com o Senhor. Os arranjos vocais e instrumentais – que adaptam canções profanas do período – são de uma graciosa licença poética. Ouvindo-os – independentemente da fé de cada um – pressente-se uma arcana beleza, evocativa de umas linhas de Emilio Prados que dizem assim: “A morte é um jardim/ interior, um espaço, um couto/ silêncio muralhado/ pela pele do meu corpo”.

Rokia Traoré “Beautiful Africa” (Nonesuch, 2013)



Ouve-se em ‘Tuit Tuit’: “Numa radiante aurora/ escuto os pássaros/ kia kia kia/ sem receios/ esquece a tua angústia/ kia kia kia/ é o momento que conta/ os instantes de felicidade e prazer”. O recorrente motivo onomatopeico equivale ao nosso piu-piu mas refere-se igualmente à alcunha de Rokia Traoré em Bamako, e traduz uma arquetípica idealização da natureza num quadro de relativa ambiguidade, coerente com os procedimentos deste “Beautiful Africa”, no qual – por cortesia do produtor, John Parish – a habitual divícia mandinga, feita de doçura e serenidade, surge regulada pela fortitude do mais enxuto rock anglo-saxónico. Os versos trazem também à memória aquela antiga ideia de que se encurtaria em metade a história da poesia retirando-lhe as aves e recordam, basta pensar na toponímia do lago d’Averno, esse mundo sem pássaros que é o inferno. Rokia escrevia estas linhas quando a capital do Mali foi palco de um Golpe de Estado e à medida que se alastrava pelo norte do país uma insurreta e ortodoxa leitura da jurisprudência islâmica. Atualmente, após intervenção francesa e com uma força militar internacional no terreno, os pássaros fogem por outra razão: a crescente algazarra nas ruas com a aproximação da data das eleições presidenciais. Talvez por tudo isto se ouça em ‘Lalla’: “Nenhuma ideia é absoluta/ nenhum preceito se inscreve em pedra”. Ou, em ‘N’Téri’, se cante a importância de ‘aceitar e amar humildemente o outro tal como ele é”. Rokia evoca o Camus de “O Mito de Sísifo”: a ausência da verdade ou de valores universais inspira-lhe revolta. Em ‘Sikey’ rebate aqueles que, acusando-a de não provir da casta das jelimuso, contestam a sua decisão de cantar, gritando “Sim, eu canto, eu toco, eu danço/ o meu desejo mantém-se focado/ e vem do coração”. Enquanto assim se mantiver só temos a ganhar.