Ninguém
melhor do que Caetano Veloso fundamentou “Recanto”, o álbum de 2011, pela voz
de Gal Costa consagrado ao seu recente momento composicional: “Vi que ela e eu
podíamos fazer soar um objeto não identificado que tivesse a ver com tudo o que
essencialmente somos”, lia-se no livreto do CD. A frase remete, obviamente, para
‘Não Identificado’, uma canção sua que, em 1968, Gal gravou no seu segundo
disco, e na qual se ouvia: “Eu vou fazer uma canção pra ela/ Uma canção
singela, brasileira/ Para lançar depois do carnaval/ Eu vou fazer um iê-iê-iê
romântico/ Um anti-computador sentimental”. Algo do espírito dessa letra se
impôs na ordem de trabalhos de “Recanto”, inesperada e operativamente agitada
pela presença da medianímica eletrónica de Alexandre Kassin e das bandas
Rabotnik e Duplexx. Pressente-se quase uma devoção supersticiosa a essa
característica inominável, à “união desses dois fatores”, conforme relembra Gal,
por e-mail, “que não tem como dar um
nome: minha voz e as ideias de Caetano formam uma sonoridade única”. Prossegue:
“Caetano é a mente por trás de todos esses elementos que ouvimos no disco. O
projeto partiu dele e eu abracei por acreditar na capacidade dele de fazer algo
bonito, intenso e inovador”. Nas entrelinhas, um escrúpulo
biográfico, uma espécie de ajuste de contas com a posteridade que intima o
canto loução da baiana a habitar novamente o presente. No fundo, nada que a
tenha apanhado desprevenida: “Temos uma relação intensa e duradoura de amizade e
confiança. Sempre tivemos essa conexão, às vezes inexplicável, que até dispensa
palavras. Não me espanta que depois de todos esses anos ainda seja assim”. Esse
vínculo cúmplice e secreto traduziu-o muitas vezes, mas nunca tão
explicitamente como em ‘Lua, Lua, Lua, Lua’ – outra canção de Caetano por si estreada,
em 1974 incluída em “Cantar” –, categoricamente patenteada pelo simbiótico verso
“a minha nossa voz atua sendo silêncio”. A abrir “Recanto”, em
‘Recanto Escuro’, essa intimidade ocupa um espaço ambíguo. Isto é, escuta-se
“Eu venho de um recanto escuro/ O sol, luz perpendicular” e não se sabe do que
se fala: se de uma memória do cárcere de Caetano, preso entre dezembro de 1968
e fevereiro de 1969, se do alegado distanciamento de Gal da atualidade musical na
última quinzena de anos, período em que viveu na Baía à luz do meio-dia dos
trópicos.
A
puritana retórica de Caetano em relação a Gal não é de hoje; pelo contrário,
evidenciou-se logo nesse fundador marco discográfico que foi “Domingo”, o LP de
1967 que assinalava a sua conjunta estreia e que o próprio coautor, nas notas
da contracapa, apresentava com presciência: “Gal participa dessa qualidade
misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de
inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro. Todas
as minhas canções que apareçam aqui foram feitas junto dela e um pouco por ela
também. Ouso considerá-la como parte integrante do meu processo de criação”. Esta
firme esperança, convictamente reiterada ao longo de décadas, é um constituinte
indispensável, ainda que à primeira vista ténue, de “Recanto”, agora sublinhado
por Gal: “Ele
[Caetano] possui um senso estético sem igual. Desde o primeiro momento em que me
começou a mostrar as canções tomando forma me empolguei com o nascimento do CD.
Mas [sem a construção prévia desse passado comum] não seria a mesma coisa. Os
dois lados caminham juntos e ambos são essenciais para que 'Recanto' existisse”.
Esse conjunto de novos temas, predominantemente pensados para a sua voz num
invulgar quadro de exigência técnica e temática, reputa-o como “um desafio”.
“Mas eu gosto muito disso”, continua, “e acho que os desafios ajudam o artista
a se superar e a estar em constante mudança, o que só acrescenta coisas boas à
carreira e à vida”. Num meio em que a coerência é tão elusiva quão fugidia é a
longevidade, estes exames sobre a passagem do tempo evocam uma precoce reflexão
de Gal a respeito da idade: em 1979, com 33 anos, e meses após uma primeira
versão da canção por Roberto Carlos, seu dedicatário, inseriu ‘Força Estranha’
– outra composição de Caetano – no alinhamento de “Gal Tropical”. E se então
dizia “Eu vi muitos cabelos brancos na fonte do artista/ O
tempo não para e no entanto ele nunca envelhece”, já em “Recanto”, em ‘Tudo
Dói’, dá expressão a algo tão mais direto, e belo, científico e existencialista,
quanto isto: “Os hipotálamos minguam/ Tudo é singular/ Dói/ Tudo dói”.
“Sou feliz por ter uma
carreira tão rica de bons momentos, diferentes nuances em diferentes épocas e muitas e boas parcerias, mas acredito
que ainda há muito o que fazer”, declara, imune ao saudosismo, embora tenha ilustrado
tantas e tão memoráveis páginas da história da música popular brasileira.
Esteve nos festivais da canção – num dos quais, o 4º, em 1968 organizado pela
TV Record, defendeu a emblemática ‘Divino, Maravilhoso’, saída da pena de
Caetano e Gilberto Gil –, fez parte do elenco central do tropicalismo ao entrar
no disco-manifesto “Tropicalia ou Panis et Circencis”, personificou a
contracultura durante os mais repressivos anos da Ditadura Militar, foi a
porcelânica voz de “Gabriela”, formou – com Caetano, Gil e Bethânia – os inconformistas
Doces Bárbaros, correu o Brasil na trupe de “O Grande Circo Místico”, editou
discos e realizou digressões inesquecíveis, permaneceu, enfim, uma insubmissa,
lasciva e mesmérica entidade artística de inestimável impacto sociocultural. E
sempre regressou a Caetano, esfíngica e edificante protagonista de ‘Deixa
Sangrar’, ‘Como Dois e Dois’, ‘Relance’, ‘Tigresa’, ‘Meu Bem, Meu Mal’, ‘Minha
Voz, Minha Vida’ ou ‘Vaca Profana’. “Olho para trás”, observa, “e vejo que a música
brasileira dessas épocas teve uma forte importância, tanto cultural como
politicamente. Cada movimento, cada artista, cada canção, tudo se pode ter
transformado de alguma maneira numa contribuição para a sociedade. Não acredito
que tenha tido vontade de reagir a algo específico e a intervir diretamente
sozinha. Acreditei sempre no poder do coletivo”. Nessa perspetiva, “Recanto”,
só aparentemente entranhado na espessura autoral de Caetano, inclui impulsos
centrais à estética tropicalista, nomeadamente pela capacidade
em criar uma narrativa muito própria através de um conjunto de signos autorreferenciais
e prosseguir simultaneamente para lá da dramaturgia de cada canção. Um instante
que no disco traduz essa forma dialética e subversiva de encarar as convenções
é ‘Autotune Autoerótico’, no qual a emissão de Gal é sujeita a um tratamento de
processador áudio – geralmente utilizado para afinar semitons – ao mesmo tempo
que a cantora atinge naturalmente e com infalível precisão algumas das notas
mais graves e agudas que se detetam no CD; ou seja, o que se supõe um
comentário sobre o impacto da tecnologia eletrónica revela-se antes uma meditação
sobre o mais antigo instrumento acústico do mundo e, consequentemente, acerca
desta sua paradigmática intérprete.
Por
tudo isso, também, o espetáculo de “Recanto” – já registado em CD e DVD – ganhou
contornos retrospetivos. Ou melhor, em virtude de uma cuidadosa seleção de
repertório por parte de Caetano e graças à homogeneidade dos arranjos de Domenico
Lancellotti (bateria e MPC), Pedro Baby (guitarra elétrica e violão) e Bruno Di
Lullo (baixo), canções de diferentes períodos – de ‘Da Maior Importância’
(1973) a ‘Um Dia de Domingo’ (1985), de ‘Vapor Barato’ (1971) a ‘Barato Total’
(1974), de ‘Baby’ (1968) a ‘Folhetim’ (1978), além das já citadas ‘Divino,
Maravilhoso’ (1968), ‘Força Estranha’ (1978), ‘Meu Bem, Meu Mal’ (1981) ou
‘Minha Voz, Minha Vida’ (1982) – são convocadas para a pátria de inquietação
que o último álbum simbolizou. É raro encontrar alguém sem vergonha da sua
história e que além disso a leve a cena. “Sabíamos que era um espetáculo
especial e que precisava ser registrado. É um show arrebatador, para o qual me entrego total e intensamente,”,
esclarece Gal, “mas ainda tenho frio na barriga antes de subir no palco”. Hoje
como antes – de “Gal” (1969), a “Índia” (1973), “Caras &
Bocas” (1977), “Gal Tropical” (1979) ou “Fantasia” (1981) –, mais do que um reflexo do
seu tempo, os álbuns de Gal Costa parecem transformá-lo ou, pelo menos, antecipar-lhe
as mais vigorosas linhas de força. “Hoje em dia me sinto mais serena, mais segura”, diz.
“O público tem sido muito especial e recetivo. Vejo uma presença jovem nos shows e isso tem me alegrado muito. Mas
gostaria que qualquer geração pudesse sentir a intensidade que eu mesma sinto
lá de cima do palco. É uma apresentação cheia de história, com a qual apresento
diversas Gals, como uma reunião de tudo que sou. Tenho sorte de poder fazer
isso ao lado de uma banda competente como a minha e com direção de Caetano”.
Ele, que, na edição de junho de 1976 da revista “Ele e Ela”, a propósito dos
Doces Bárbaros, sobre ela escreveu: “Para mim, Gal Costa é
centro. O meio de tudo. A voz. A voz da qual nós somos apenas vozes”. O inverso
será certamente verdadeiro.
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