6 de julho de 2013

Entrevista a Gal Costa




Ninguém melhor do que Caetano Veloso fundamentou “Recanto”, o álbum de 2011, pela voz de Gal Costa consagrado ao seu recente momento composicional: “Vi que ela e eu podíamos fazer soar um objeto não identificado que tivesse a ver com tudo o que essencialmente somos”, lia-se no livreto do CD. A frase remete, obviamente, para ‘Não Identificado’, uma canção sua que, em 1968, Gal gravou no seu segundo disco, e na qual se ouvia: “Eu vou fazer uma canção pra ela/ Uma canção singela, brasileira/ Para lançar depois do carnaval/ Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico/ Um anti-computador sentimental”. Algo do espírito dessa letra se impôs na ordem de trabalhos de “Recanto”, inesperada e operativamente agitada pela presença da medianímica eletrónica de Alexandre Kassin e das bandas Rabotnik e Duplexx. Pressente-se quase uma devoção supersticiosa a essa característica inominável, à “união desses dois fatores”, conforme relembra Gal, por e-mail, “que não tem como dar um nome: minha voz e as ideias de Caetano formam uma sonoridade única”. Prossegue: “Caetano é a mente por trás de todos esses elementos que ouvimos no disco. O projeto partiu dele e eu abracei por acreditar na capacidade dele de fazer algo bonito, intenso e inovador”. Nas entrelinhas, um escrúpulo biográfico, uma espécie de ajuste de contas com a posteridade que intima o canto loução da baiana a habitar novamente o presente. No fundo, nada que a tenha apanhado desprevenida: “Temos uma relação intensa e duradoura de amizade e confiança. Sempre tivemos essa conexão, às vezes inexplicável, que até dispensa palavras. Não me espanta que depois de todos esses anos ainda seja assim”. Esse vínculo cúmplice e secreto traduziu-o muitas vezes, mas nunca tão explicitamente como em ‘Lua, Lua, Lua, Lua’ – outra canção de Caetano por si estreada, em 1974 incluída em “Cantar” –, categoricamente patenteada pelo simbiótico verso a minha nossa voz atua sendo silêncio”. A abrir “Recanto”, em ‘Recanto Escuro’, essa intimidade ocupa um espaço ambíguo. Isto é, escuta-se “Eu venho de um recanto escuro/ O sol, luz perpendicular” e não se sabe do que se fala: se de uma memória do cárcere de Caetano, preso entre dezembro de 1968 e fevereiro de 1969, se do alegado distanciamento de Gal da atualidade musical na última quinzena de anos, período em que viveu na Baía à luz do meio-dia dos trópicos.

A puritana retórica de Caetano em relação a Gal não é de hoje; pelo contrário, evidenciou-se logo nesse fundador marco discográfico que foi “Domingo”, o LP de 1967 que assinalava a sua conjunta estreia e que o próprio coautor, nas notas da contracapa, apresentava com presciência: “Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro. Todas as minhas canções que apareçam aqui foram feitas junto dela e um pouco por ela também. Ouso considerá-la como parte integrante do meu processo de criação”. Esta firme esperança, convictamente reiterada ao longo de décadas, é um constituinte indispensável, ainda que à primeira vista ténue, de “Recanto”, agora sublinhado por Gal: “Ele [Caetano] possui um senso estético sem igual. Desde o primeiro momento em que me começou a mostrar as canções tomando forma me empolguei com o nascimento do CD. Mas [sem a construção prévia desse passado comum] não seria a mesma coisa. Os dois lados caminham juntos e ambos são essenciais para que 'Recanto' existisse”. Esse conjunto de novos temas, predominantemente pensados para a sua voz num invulgar quadro de exigência técnica e temática, reputa-o como um desafio”. “Mas eu gosto muito disso”, continua, “e acho que os desafios ajudam o artista a se superar e a estar em constante mudança, o que só acrescenta coisas boas à carreira e à vida”. Num meio em que a coerência é tão elusiva quão fugidia é a longevidade, estes exames sobre a passagem do tempo evocam uma precoce reflexão de Gal a respeito da idade: em 1979, com 33 anos, e meses após uma primeira versão da canção por Roberto Carlos, seu dedicatário, inseriu ‘Força Estranha’ – outra composição de Caetano – no alinhamento de “Gal Tropical”. E se então dizia Eu vi muitos cabelos brancos na fonte do artista/ O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece”, já em “Recanto”, em ‘Tudo Dói’, dá expressão a algo tão mais direto, e belo, científico e existencialista, quanto isto: “Os hipotálamos minguam/ Tudo é singular/ Dói/ Tudo dói”.

Sou feliz por ter uma carreira tão rica de bons momentos, diferentes nuances em diferentes épocas e muitas e boas parcerias, mas acredito que ainda há muito o que fazer”, declara, imune ao saudosismo, embora tenha ilustrado tantas e tão memoráveis páginas da história da música popular brasileira. Esteve nos festivais da canção – num dos quais, o 4º, em 1968 organizado pela TV Record, defendeu a emblemática ‘Divino, Maravilhoso’, saída da pena de Caetano e Gilberto Gil –, fez parte do elenco central do tropicalismo ao entrar no disco-manifesto “Tropicalia ou Panis et Circencis”, personificou a contracultura durante os mais repressivos anos da Ditadura Militar, foi a porcelânica voz de “Gabriela”, formou – com Caetano, Gil e Bethânia – os inconformistas Doces Bárbaros, correu o Brasil na trupe de “O Grande Circo Místico”, editou discos e realizou digressões inesquecíveis, permaneceu, enfim, uma insubmissa, lasciva e mesmérica entidade artística de inestimável impacto sociocultural. E sempre regressou a Caetano, esfíngica e edificante protagonista de ‘Deixa Sangrar’, ‘Como Dois e Dois’, ‘Relance’, ‘Tigresa’, ‘Meu Bem, Meu Mal’, ‘Minha Voz, Minha Vida’ ou ‘Vaca Profana’. Olho para trás”, observa, e vejo que a música brasileira dessas épocas teve uma forte importância, tanto cultural como politicamente. Cada movimento, cada artista, cada canção, tudo se pode ter transformado de alguma maneira numa contribuição para a sociedade. Não acredito que tenha tido vontade de reagir a algo específico e a intervir diretamente sozinha. Acreditei sempre no poder do coletivo”. Nessa perspetiva, “Recanto”, só aparentemente entranhado na espessura autoral de Caetano, inclui impulsos centrais à estética tropicalista, nomeadamente pela capacidade em criar uma narrativa muito própria através de um conjunto de signos autorreferenciais e prosseguir simultaneamente para lá da dramaturgia de cada canção. Um instante que no disco traduz essa forma dialética e subversiva de encarar as convenções é ‘Autotune Autoerótico’, no qual a emissão de Gal é sujeita a um tratamento de processador áudio – geralmente utilizado para afinar semitons – ao mesmo tempo que a cantora atinge naturalmente e com infalível precisão algumas das notas mais graves e agudas que se detetam no CD; ou seja, o que se supõe um comentário sobre o impacto da tecnologia eletrónica revela-se antes uma meditação sobre o mais antigo instrumento acústico do mundo e, consequentemente, acerca desta sua paradigmática intérprete.

Por tudo isso, também, o espetáculo de “Recanto” – já registado em CD e DVD – ganhou contornos retrospetivos. Ou melhor, em virtude de uma cuidadosa seleção de repertório por parte de Caetano e graças à homogeneidade dos arranjos de Domenico Lancellotti (bateria e MPC), Pedro Baby (guitarra elétrica e violão) e Bruno Di Lullo (baixo), canções de diferentes períodos – de ‘Da Maior Importância’ (1973) a ‘Um Dia de Domingo’ (1985), de ‘Vapor Barato’ (1971) a ‘Barato Total’ (1974), de ‘Baby’ (1968) a ‘Folhetim’ (1978), além das já citadas ‘Divino, Maravilhoso’ (1968), ‘Força Estranha’ (1978), ‘Meu Bem, Meu Mal’ (1981) ou ‘Minha Voz, Minha Vida’ (1982) – são convocadas para a pátria de inquietação que o último álbum simbolizou. É raro encontrar alguém sem vergonha da sua história e que além disso a leve a cena. “Sabíamos que era um espetáculo especial e que precisava ser registrado. É um show arrebatador, para o qual me entrego total e intensamente,”, esclarece Gal, mas ainda tenho frio na barriga antes de subir no palco”. Hoje como antes – de “Gal” (1969), a “Índia” (1973), “Caras & Bocas” (1977), “Gal Tropical” (1979) ou “Fantasia” (1981) –, mais do que um reflexo do seu tempo, os álbuns de Gal Costa parecem transformá-lo ou, pelo menos, antecipar-lhe as mais vigorosas linhas de força. “Hoje em dia me sinto mais serena, mais segura”, diz. O público tem sido muito especial e recetivo. Vejo uma presença jovem nos shows e isso tem me alegrado muito. Mas gostaria que qualquer geração pudesse sentir a intensidade que eu mesma sinto lá de cima do palco. É uma apresentação cheia de história, com a qual apresento diversas Gals, como uma reunião de tudo que sou. Tenho sorte de poder fazer isso ao lado de uma banda competente como a minha e com direção de Caetano”. Ele, que, na edição de junho de 1976 da revista “Ele e Ela”, a propósito dos Doces Bárbaros, sobre ela escreveu: “Para mim, Gal Costa é centro. O meio de tudo. A voz. A voz da qual nós somos apenas vozes”. O inverso será certamente verdadeiro.

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