27 de julho de 2013

John Zorn @60 no Jazz em Agosto



 (crédito: Chad Batka para o New York Times)
Há uma imagem que – transferida para a área da música – se cola à pele de John Zorn desde meados dos anos 80: a do insone viajante noturno, de apetite voraz, funambulesca moral e distorcido sentido de justiça, que manobra aguçando instintos predatórios pelas artérias da cidade de Nova Iorque numa espécie de torpor metafísico – um pouco ao jeito do Travis Bickle, de “Taxi Driver” –, fixando-se patologicamente na dissimulada observação da degradação urbana e enleando numa psicótica teia mental os detritos que lhe entopem veias, telas e vielas. A produção dos Naked City – o grupo que, em 1988, formou com Bill Frisell, Fred Frith, Wayne Horvitz e Joey Baron – representará o ápice de tal perspetiva, afetada que está não tanto pela caleidoscópica e compendiosa reconfiguração de tantos livros de estilo do fenómeno musical, mas, antes, pela sua sujeição a um primado que estabelece a validade estética de qualquer fonte de ruído na organização desse mesmo fenómeno. Na altura, quando se tinha de ‘explicar’ o impossivelmente denso som de Zorn recorria-se àquela frase que se ouve em “Spillane” (1987): “Sinto-me como se tivesse fumado um maço inteiro de cigarros e me esquecido de deitar o fumo para fora”. Se “Naked City”, o filme que, em 1948, Jules Dassin realizou a partir do homónimo álbum fotográfico de Weegee, rematava que entre as “oito milhões de histórias na cidade nua”, tinha apenas contado “uma delas”, já a banda de Zorn parecia disposta a relatá-las todas. Numa entrevista do período – incluída pelo seu condutor em “American Composers – Dialogues on Contemporary Music” –, Edward Strickland mencionava essa estrutura, elíptica e elidível, aludindo a um desmembramento dionisíaco, e Zorn respondia: “Stravinsky trabalhava em blocos; Ives também se interessava por bizarras justaposições; e, claro, tudo o que saía da televisão era assim. […] Cria-se algo que recolhe elementos do rock, do blues, da música clássica, do folclore, e que se reúne filmicamente, como no ato da montagem. [...] De uma maneira que levanta mais questões do que gera respostas”. A revista Wire de março de 1989, numa referência a Zappa, essoutro enciclopédico conceptualista, chamava-lhe “jazz do inferno” e incluía este depoimento: “Para a semana vamos [com os Naked City] ao festival de jazz de Montreux, mas a cena do jazz pode ser uma chatice. Acho que somos convidados para tocar em festivais de jazz porque os organizadores precisam de alguém para agitar as águas e gerar controvérsia – é esse o meu papel”.

Um quarto de século mais tarde, não tendo por um segundo abrandado o seu acelerado metabolismo, e mantendo uma certa aversão juvenil ao mundano, nem Zorn é já esse necrófago turista do apocalipse, nem se pode dizer que dependa estritamente de polémicas para fazer chegar a sua mensagem ao grande público ou, muito menos, que – num processo análogo àquele que levou a geração do minimalismo dos lofts até aos auditórios das elites – não é precisamente em festivais de jazz que encontrou o habitat natural para as suas mais transversais apresentações. Sim, permanece um hábil contorcionista, tentado pelo maximalismo, bordejando, quiçá oportunisticamente, diversas tangentes culturais, promovendo tão ecléticos quão fortuitos curto-circuitos artísticos, expandindo-se como um organismo vivo essencialmente adaptável ainda que eminentemente autónomo. Mas, embora hemorrágica, obsessivamente hermética e ostensivamente arcana, a verdade é que a sua emissão assume hoje contornos canónicos e de paradigmática relevância no seio da arte de vanguarda: só nos últimos quatro anos, e sempre através da editora que fundou em 1995, a Tzadik, publicou cerca de 35 discos com obras suas. E, ainda que levando a costumeiros paradoxos – são perfeitamente singulares e excêntricas construções cuja disposição serial torna menos distintas; possuem características demasiado intersticiais para suportar a sua contínua catalogação temática, etc –, é inegável a excelência interpretativa de que se revestem. Em novembro de 2011, Zorn falava sobre o seu percurso ao sítio Altered Zones: “Posso seguir a minha inspiração desde a ideia inicial até à escrita, ao ensaio, à atuação, gravação, mistura, masterização, design, fabrico, lançamento e distribuição de determinado projeto, e em todas essas etapas estou rodeado por um coeso grupo de amigos, ao meu lado há 10, 20 ou 30 anos. […] Mas a insulação deu-se por necessidade. Foi a única forma que arranjei para me certificar de que aquilo que queria fazer ia para a frente”. Há muito que a retórica de Zorn, num particular em que se incluirá o seu entendimento do judaísmo – incontornável desde a fundação do quarteto Masada, em 1994, não obstante a rejeição pública da ortodoxia sionista –, se socorre do isolacionismo. No livreto da caixa “The Parachute Years” – a antologia com insólitos registos captados entre 1977 e 1981 – escrevia com irónico fatalismo acerca de “uma triste e solitária vida de alienação e exílio autoimpostos”, e no documentário de Claudia Heuermann, “A Bookshelf On Top of The Sky”, afirmava: “Para mim, um artista é alguém separado da sociedade que deve seguir a sua própria visão sem se comprometer ou sofrer influências destas nefastas forças que nos rodeiam e que querem a todo o custo impedir que uma voz que seja venha dizer: o mundo pode ser um local diferente”.

E outra coisa – que não a expressão de todas essas coisas diferentes que, segundo Zorn, o mundo pode ser – não promulga a série de eventos “Zorn@60”, uma itinerante e plural digressão por espaços europeus, asiáticos e norte-americanos que, a pretexto do seu sexagésimo aniversário (efetivo a 2 de setembro), lhe traça o mais ambicioso retrato de que há memória. Ao Jazz em Agosto leva alguns dos seus mais antigos e valorosos cúmplices – Marc Ribot, Jamie Saft, Trevor Dunn, Kenny Wollesen, Joey Baron, Cyro Baptista e Ikue Mori – para três noites temáticas: sexta, dia 2, com o charmoso e exótico repertório de The Dreamers, destila uma talismânica inspiração em Baxter, Denny ou Lyman, sábado, 3, recupera parcelas emblemáticas do seu trabalho em bandas-sonoras acompanhando a projeção de filmes de Joseph Cornell, Maya Deren, Wallace Berman e Harry Smith – tratam-se possivelmente dos fascinantes “Rose Hobart” (1936), “Ritual in Transfigured Time” (1946), “Aleph” (1956-1966) e “Oz: The Tin Woodman's Dream” (1967) – e domingo, 4, sobe ao palco com Electric Masada, a sempre extática e amplificada revisitação de ilustres páginas do seu cancioneiro de extração folclórica. Paralelamente a isso, ao final da tarde de sábado e domingo, exibe-se o DVD “John Zorn’s Treatment for a Film in Fifteen Scenes”. Não se sabe o que ficará de tudo isto, mas talvez não haja pressa. Afinal, como contava no número de maio de 2009 da Jazz Times, Zorn não vai a lado nenhum: “O que faço requer muitos sacrifícios, até em termos pessoais. Uma pessoa com filhos tem de lhes dedicar pelo menos metade da vida. Já no meu caso os meus filhos são as composições, os discos, as atuações, e a minha família é o meio musical. Por isso não é assim tão estranho fundar o Stone ou a Tzadik. Estou aqui para ajudar a mesma comunidade que sempre me alimentou. Não vejo televisão nem leio revistas ou jornais. Concentro-me inteiramente na minha arte. É essa a minha prenda para o mundo; é para isso que estou neste planeta”.

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