Zeloso curador na eminente “Databaseof Recorded American Music” e inspirado editor e redator na trimestral “SoundAmerican”, Nate Wooley vasculha habilmente nesse espaço em que se arquivam as vanguardas
norte-americanas. Quer isto dizer que, contrariamente à opinião comum, que
deprecia aspetos hereditários em manifestações artísticas de singular
configuração – e, durante anos, Wooley foi tido como um xamane do insólito –, o
trompetista cumpre os requisitos para que se entenda a sua ação à luz de um,
quiçá subterrâneo, contínuo cultural, no qual, por entre um número excecional
de forças expressivas, cabe, naturalmente, essa que se pratica numa jurisdição
invulgarmente atenta aos direitos de sucessão e se apelida de jazz. Seria,
aliás, presunçoso e injusto considerar que a sua produção – ao lado da de
análogos instrumentistas como Peter Evans, Greg Kelley, Franz Hautzinger ou
Axel Dörner, invariavelmente coadunados na estirpe de Bill Dixon – se gerava, qual
erva-daninha, espontânea e invasoramente. Dir-se-á que o quinteto – agora, com
o ingresso do tubista Dan Peck, expandido para sexteto – há dois anos
responsável por “(Put Your) Hands Together” se formou para dar resposta a esta
questão, ainda que salvaguardando uma premissa essencial: afiançar que cada um
dos seus agentes não se aliena no conjunto de vínculos históricos que possa reivindicar.
Ou seja, Wooley, Peck, Josh Sinton (saxofone barítono e clarinete baixo), Matt
Moran (vibrafone), Eivind Opsvik (contrabaixo) e Harris Eisenstadt (bateria)
promovem aqui – numa sessão que tem como único senão uma escrita nem sempre à
altura dos acontecimentos – uma genial abstração do pendor relacional no jazz
contemporâneo, evocando simultaneamente as mais extáticas e elegantes
características que procedem da sua fundação enquanto linguagem. Um caso sério.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
28 de setembro de 2013
Nate Wooley Sextet “(Sit In) The Throne of Friendship” (Clean Feed, 2013)
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Bach: Six Sonatas for Violin and Piano (ECM, 2013)
Michelle
Makarski (vln), Keith Jarrett (p)
Ainda que
reduzidas ao essencial, estas sonatas para violino e piano – originalmente, seis
sonatas para cravo obbligato e violino,
BWV 1014-1019 – beneficiam da fraseologia taumatúrgica de Jarrett. No entanto, quem
venha a ler a entrevista do pianista a Ethan Iverson, na DownBeat deste mês, poderá
estranhar um discurso acometido por tantos escrúpulos. À inevitável questão, “É
o seu Bach – tão puro e rítmico – influenciado pelo facto de ser músico de jazz?”,
responde: “Não sei. Mas gosto do que ele disse acerca de se tocar lindamente: ‘toca
a nota certa no momento exato!’”. Eis o busílis. E, neste conjunto de peças de
J.S. Bach (1685-1750) – compostas no principado de Anhalt-Köthen e afins às suítes
para violoncelo, às sonatas para viola da gamba ou ao primeiro tomo de “O Cravo
Bem Temperado” – dir-se-á que, ao contrário do que foi historicamente
patenteado por notáveis incendiários como Grumiaux, Menuhin ou Busch, a forma
de ultrapassar eventuais dificuldades residirá em executá-las de maneira a
conservar-lhes o mistério, não a revelá-lo. Paradoxo compreendido por João
César Monteiro, que, em “À Flor do Mar”, através dos espontaneamente sutis Sigiswald
Kuijken e Gustav Leonhardt, utilizou o adagio
ma non tanto da “Sonata em Mi Maior” para que daquela casa debruçada sobre
a Ria Formosa não se elidisse o segredo. Foi uma tendência sublinhada por
Monica Huggett e Ton Koopman e, dispensando já instrumentos de época, mais
recentemente ensaiada por Frank Peter Zimmerman e Enrico Pace. Mas em nenhuma dessas
ocasiões se prescindia por completo de um anacrónico dramatismo – uma pista
para o identificar seria acompanhar o vibrato
nos violinistas – que Makarski e Jarrett denunciam agora como redundante. Quer
isso dizer que se procurou aqui fazer algo de instintivamente certo, embora
raro: entender o homem mais do que o seu mito.
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21 de setembro de 2013
Cannonball Adderley with Milt Jackson “Things Are Getting Better”; Chet Baker “Plays the Best of Lerner & Loewe”; Bill Evans Trio “How My Heart Sings!”; Wes Montgomery “So Much Guitar!” (Riverside, 2013)
Quando criada, em 1953, a Riverside
era como um areal ancinhado por Bill Grauer e Orrin Keepnews, zelosos respigadores
em busca de detritos deixados nas enxurradas do ragtime, boogie-woogie e swing – atestam-no as primeiras referências
na etiqueta, dedicadas a Jelly Roll Morton, Albert Ammons ou Duke Ellington. Só
que esses apóstolos de uma religião cedo se converteram em neófitos noutra. Assinando
Thelonious Monk, Randy Weston, Sonny Rollins, Johnny Griffin ou Abbey Lincoln, e
na senda das concorrentes Prestige, Contemporary ou Blue Note, a editora, em
nome próprio e através da subsidiária Jazzland, e conquanto não fosse essa a
disposição inicial dos seus fundadores, veio a revelar-se uma diligente prospetora
de jazz moderno. Sessenta anos depois, a partir de jurisdições menos
restritivas em termos patrimoniais, é óbvio que estas gravações – por negligência
do proprietariado e por, em suficientes países, terem entrado em domínio público
– passaram já pelas mais variadas mãos. Nesse âmbito, tem-se hoje como certo o
que anteriormente se subestimava: que nenhuma tiragem dura para sempre; que
colecionadores no mundo inteiro, ainda que integral ou avulsamente as possuindo,
favorecem a excelência técnica e a inserção de inéditos nas suas reposições; e que
apenas a sua manutenção em catálogo pelos detentores das matrizes tem um efeito
regulador nos mercados. Bem o sabe a Concord, atual publicadora da Riverside, que
relança estes discos com remasterizações, novos textos nos livretos e estreias
resgatadas às bobines – de modo perverso, num ano de simbólico aniversário, e com
um punhado de títulos de batismo tão otimista, lembra sessões organizadas em
torno de líderes que nem em França teriam atingido a idade mínima da reforma.
“Things Are Getting Better”, de
1958, junta Adderley ao vibrafonista do Modern Jazz Quartet e, sem desprimor
para Billy Mitchell, confirma a falta que o saxofonista fez no encontro entre
Jackson e Ray Charles, nesse ano dado à estampa. A reunião foi estelar mas
desafetada, colorida por Art Blakey, Percy Heath e Wynton Kelly. Mais tensa, a adesão
de Chet Baker ao repertório do libretista Alan Jay Lerner e do compositor
Frederick Loewe, de 1959, não foi por isso menos evasiva: aliás, talvez as evocações
das Terras Altas de “Brigadoon”, da Paris de “Gigi” ou da Londres de “My Fair
Lady” tenham estado na origem do exílio europeu do trompetista, acabado de sair
da prisão de Rikers. Mas tal como em “Chet”, com o essencial do grupo que aqui
o acompanhava (Bill Evans, Herbie Mann, Pepper Adams), só fazia ouvir o seu
espectro. Outra coisa não assombrava o autor de “How My Heart Sings!”. Proveniente das mesmas
visitas a estúdio – de 1962 – que resultaram em “Moonbeams”, o LP é tido como uma
esconjuração de Scott LaFaro, cujo óbito, meses antes, havia
devastado Evans. Não obstante a cordata presença de Chuck Israels, é Paul
Motian que carrega às costas o pianista, entregue a sombrias harmonizações e
improvisações de tão fascinante quão incaracterística frialdade (versões até
agora ignoradas de ‘34 Skidoo’ e ‘Everything I Love’ são esclarecedoras). Por
fim, “So Much
Guitar!”, de 1961, aumentado pelo LP “The Montgomery Brothers in Canada”, e
impecavelmente sustentado por Hank Jones e excentricamente comentado por Ray
Barretto, é de um genuíno conforto caseiro, com Montgomery, jamais
recalcitrante, a patentear um idioma de lacónica adulação, que lhe
sobreviveria.
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Ebo Taylor & Uhuru Yenzu “Conflict” (Mr. Bongo, 2013) & Gyedu-Blay Ambolley “Simigwa” (Academy Lps, 2012)
Decorrida uma década desde “GhanaSoundz”, articulam-se agora os elementos díspares nessa pioneira assemblagem. E
Marijata, Sweet Talks, K. Frimpong, Ebo Taylor ou Gyedu-Blay Ambolley não são mais
meros representantes no eBay de um país de horizontes esquadrinhados por
aventureiros em busca de obscuro vinil. Mas um tempo houve em que aparentaram
ser pouco mais do que isso – um quase nada que ganhava gratífica expressão na casa
das centenas de euros, inspirando ressentimento face a esses viajantes que
raramente se explicavam e que, quando o faziam, faziam-no mal. O colecionismo
era sinónimo de opressão e DJ voltavam do Gana como conspiradores a regressar
de ferinos conciliábulos – seguindo a sua atividade de perto, no entanto,
dir-se-ia que o maior dos seus pecados, tal o rombo no orçamento familiar,
seria não fazerem as respetivas mulheres partícipes das suas ações. Afirmar-se-ia
depois que a restauração de carreiras se dava por pressão do mercado, não pela
fantasia. Taylor e Ambolley, cúmplices nos Uhuru Dance Band ou Apagya Show
Band, com discos novos no ano passado, teriam algo a dizer a quem umas vezes
utiliza a lógica e outras a demagogia. E quando se disponibilizam as suas
obras-primas – “Conflict”, de 1980, e “Simigwa”, de 1975, excêntricas
bissetrizes no afrobeat e highlife – prova-se que, quanto muito, foram
culpados do que ninguém poderá levar a mal: acreditar que uma só vez se produziria
a exploração do homem pelo homem.
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