Em 1959, em entrevista para a revista sul-africana “Drum”, o
jornalista Benson Dyantyi perguntava a Abdullah Ibrahim – na altura, conhecido
por Dollar Brand – de onde vinha, isto é, ao que é que chamava casa: “Casa é
onde quer que seja que possa tomar uma bebida e passar uma noite”,
respondeu-lhe o pianista, de modo algo profético. Pois, a verdade é que, pouco
depois, e como reação à crescente coação do regime do apartheid, Abdullah – e a sua mulher, a cantora Sathima Bea
Benjamin – partiria com a casa às costas para a Europa, primeiro, e EUA,
depois. Viria, de certa forma, a ser essa a sua sina: no jazz, a de dar corpo a
uma individualidade radicalmente deslocalizada. Ou seja, o seu bilhete de
identidade era um dispositivo colocado ao serviço de passado e futuro, pré e
pós-africânder. Involuntariamente, quiçá, veio também a gerar epifanias, umas
atrás das outras, junto daqueles que se diriam numa longa travessia pelo
deserto – o seu estilo transformado em exílio, o seu exílio em errância e,
logo, em peregrinagem. Nessa medida, a sua discografia de meados de 70 (principalmente
essa, sim) assentava que nem uma luva naquele tipo de leitura mais teleológico
da coisa, que, com zelo, agitava a bandeira da libertação a cada disco e a cada
concerto – e é impossível não detetar a sua marca num expoente pianístico do
período, o “The Köln Concert”, de Keith Jarrett, cuja basilar itinerância se
diria mais assombrada pela trajetória pessoal de Ibrahim que pelas vivências do
seu autor.
Agora, ao que parece, e aos 85 anos, Abdullah chama casa a um bucólico
recanto no enclave alpino da Alta Baviera – e, em circunstâncias tão inesperadas
quão invulgares, foi ao piano do salão de festas de um restaurante típico da
região que se sentou a 17 de março deste ano para inventariar muito daquilo
pelo qual ao longo de décadas passou. No entanto, a sensação que fica é que
nada disto foi premeditado, que esta espantosa coleção de fragmentos que
converteu numa rapsódica suíte de cortar a respiração – em 20 indexações, para
maior conveniência de quem a escuta – não tinha como fim lembrar o tanto do
jazz que emana de si e que para si imperturbavelmente converge. Seja como for, jamais
havia desenhado um arco narrativo tão monumental, trazendo à lembrança as meditações
outonais de Thelonious Monk em “Solo Monk” (1964) e de Randy Weston em “Ancient
Future” (2002) – xamãs que transcenderam a esfera mais quotidiana da sua
própria obra, guiando-nos, eles mesmos, por esse terreno minado da memória em
que exercem a sua peculiar medicina. É de tal maneira, aliás, que se está à
espera que aos sessenta e tal minutos, quando levanta por fim as mãos do
teclado, Ibrahim faça como Dorothy, de “O Feitiçeiro de Oz”, e feche os olhos,
bata três vezes com os calcanhares e repita para si: “Não há como a nossa
casa.” Talvez tenha aprendido com um antigo colega seu nos Jazz Epistles, em
1959 – Hugh Masekela, essoutro exilado que um dia gravou um disco a que chamou
“Home is Where the Music is”.
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