16 de novembro de 2019

Abdullah Ibrahim “Dream Time” (Enja, 2019)


Em 1959, em entrevista para a revista sul-africana “Drum”, o jornalista Benson Dyantyi perguntava a Abdullah Ibrahim – na altura, conhecido por Dollar Brand – de onde vinha, isto é, ao que é que chamava casa: “Casa é onde quer que seja que possa tomar uma bebida e passar uma noite”, respondeu-lhe o pianista, de modo algo profético. Pois, a verdade é que, pouco depois, e como reação à crescente coação do regime do apartheid, Abdullah – e a sua mulher, a cantora Sathima Bea Benjamin – partiria com a casa às costas para a Europa, primeiro, e EUA, depois. Viria, de certa forma, a ser essa a sua sina: no jazz, a de dar corpo a uma individualidade radicalmente deslocalizada. Ou seja, o seu bilhete de identidade era um dispositivo colocado ao serviço de passado e futuro, pré e pós-africânder. Involuntariamente, quiçá, veio também a gerar epifanias, umas atrás das outras, junto daqueles que se diriam numa longa travessia pelo deserto – o seu estilo transformado em exílio, o seu exílio em errância e, logo, em peregrinagem. Nessa medida, a sua discografia de meados de 70 (principalmente essa, sim) assentava que nem uma luva naquele tipo de leitura mais teleológico da coisa, que, com zelo, agitava a bandeira da libertação a cada disco e a cada concerto – e é impossível não detetar a sua marca num expoente pianístico do período, o “The Köln Concert”, de Keith Jarrett, cuja basilar itinerância se diria mais assombrada pela trajetória pessoal de Ibrahim que pelas vivências do seu autor.
Agora, ao que parece, e aos 85 anos, Abdullah chama casa a um bucólico recanto no enclave alpino da Alta Baviera – e, em circunstâncias tão inesperadas quão invulgares, foi ao piano do salão de festas de um restaurante típico da região que se sentou a 17 de março deste ano para inventariar muito daquilo pelo qual ao longo de décadas passou. No entanto, a sensação que fica é que nada disto foi premeditado, que esta espantosa coleção de fragmentos que converteu numa rapsódica suíte de cortar a respiração – em 20 indexações, para maior conveniência de quem a escuta – não tinha como fim lembrar o tanto do jazz que emana de si e que para si imperturbavelmente converge. Seja como for, jamais havia desenhado um arco narrativo tão monumental, trazendo à lembrança as meditações outonais de Thelonious Monk em “Solo Monk” (1964) e de Randy Weston em “Ancient Future” (2002) – xamãs que transcenderam a esfera mais quotidiana da sua própria obra, guiando-nos, eles mesmos, por esse terreno minado da memória em que exercem a sua peculiar medicina. É de tal maneira, aliás, que se está à espera que aos sessenta e tal minutos, quando levanta por fim as mãos do teclado, Ibrahim faça como Dorothy, de “O Feitiçeiro de Oz”, e feche os olhos, bata três vezes com os calcanhares e repita para si: “Não há como a nossa casa.” Talvez tenha aprendido com um antigo colega seu nos Jazz Epistles, em 1959 – Hugh Masekela, essoutro exilado que um dia gravou um disco a que chamou “Home is Where the Music is”.

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