9 de novembro de 2019

Vivaldi: Juditha Triumphans (Alia Vox, 2019)


Tomar-se-ia por outra impugnação do patriarcado do pós-#MeToo, não fosse, claro, vir de quem vem – e logo agora. Aliás, não obstante o muito que de panfletário possui, nem a obra de Vivaldi se deixou colonizar em absoluto pelo fungo ideológico do seu tempo: aquele verão de 1716 em que Veneza infligiu pesadas derrotas às forças otomanas. Ou seja, sim, em circunvalação à exegese bíblica, “Juditha Triumphans” termina longe da Judeia, em pleno Adriático. (E nessa medida é possível que tenha estado para a sua era como o “Nabucco”, de Verdi, esteve para o Risorgimento.) Mas basta escutá-la para que se chegue invariavelmente à mesma conclusão que Michael Talbot, de “Studi Vivaldiani”: “Independentemente daquilo em que é suposto acreditarmos, o assassínio de Holofernes e a dor de Vagao à descoberta da sua morte fazem-nos sentir muito mais tristes do que satisfeitos – a nossa mente diz-nos que o oratório deve ser lido como uma história que acaba bem, mas as nossas emoções dizem-nos exatamente o contrário.”

Talvez por isso, por ter alimentado como poucos as qualidades mais ambíguas e humanas da peça (o acalanto das flautas de bisel em ‘Umbrae carae, aurae adoratae’, o melífluo oboé de ‘Noli, o cara te adorantis’, o fidelíssimo chalumeau dos arrulhos de uma rola em ‘Veni, veni, mi sequere fida’ ou o flébil e rúptil mandolim de ‘Transit aetas’) e, quiçá, por testemunhar de perto as tentativas contemporâneas de se politizar de forma inequívoca a arte pela retórica, tenha Jordi Savall escolhido para a representar “Judite com a Cabeça de Holofernes”, de Cristofano Allori. Trata-se de uma tela inspirada em “O Livro de Judite”, relato do Antigo Testamento que foi ao longo dos séculos iluminando o espírito de todos quanto estiveram submetidos ao jugo, em que Allori recorre à cabeça decapitada de Holofernes para fazer um autorretrato e pinta Judite não à semelhança dessa piedosa viúva judia que, com coragem e fé em Deus, se infiltra no acampamento inimigo, seduz e degola o general de Nabucodonosor, e liberta o seu povo das garras assírias, mas, antes, à imagem de uma ex-namorada que lhe tinha sido infiel. É mesmo de perder a cabeça! No caso, quem se põe a coçar a cabeça são as plateias de Savall. Não é o ISIS que corta pescoços? Não é isto um alerta, face às ambições imperialistas de Erdogan? O ato de Judite, que fez escorrer sangue naqueloutro imortal quadro de Artemisia Gentileschi, não é sobretudo uma alegoria feminista? Ao som das trompetas, não devem os catalães ir para a rua? Sabe Savall e sabia Vivaldi: a arte não é um espelho, é uma Casa de Espelhos – quanto mais procuramos o nosso reflexo, menos nítidos vamos ficando.

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