Tomar-se-ia por outra impugnação do patriarcado do
pós-#MeToo, não fosse, claro, vir de quem vem – e logo agora. Aliás, não
obstante o muito que de panfletário possui, nem a obra de Vivaldi se deixou colonizar
em absoluto pelo fungo ideológico do seu tempo: aquele verão de 1716 em que
Veneza infligiu pesadas derrotas às forças otomanas. Ou seja, sim, em
circunvalação à exegese bíblica, “Juditha Triumphans” termina longe da Judeia,
em pleno Adriático. (E nessa medida é possível que tenha estado para a sua era como
o “Nabucco”, de Verdi, esteve para o Risorgimento.)
Mas basta escutá-la para que se chegue invariavelmente à mesma conclusão que
Michael Talbot, de “Studi Vivaldiani”: “Independentemente daquilo em que é
suposto acreditarmos, o assassínio de Holofernes e a dor de Vagao à descoberta
da sua morte fazem-nos sentir muito mais tristes do que satisfeitos – a nossa
mente diz-nos que o oratório deve ser lido como uma história que acaba bem, mas
as nossas emoções dizem-nos exatamente o contrário.”
Talvez por isso, por ter alimentado como poucos as
qualidades mais ambíguas e humanas da peça (o acalanto das flautas de bisel em
‘Umbrae carae, aurae adoratae’, o melífluo oboé de ‘Noli, o cara te adorantis’,
o fidelíssimo chalumeau dos arrulhos
de uma rola em ‘Veni, veni, mi sequere fida’ ou o flébil e rúptil mandolim de
‘Transit aetas’) e, quiçá, por testemunhar de perto as tentativas
contemporâneas de se politizar de forma inequívoca a arte pela retórica, tenha
Jordi Savall escolhido para a representar “Judite com a Cabeça de Holofernes”,
de Cristofano Allori. Trata-se de uma tela inspirada em “O Livro de Judite”, relato
do Antigo Testamento que foi ao longo dos séculos iluminando o espírito de todos
quanto estiveram submetidos ao jugo, em que Allori recorre à cabeça decapitada
de Holofernes para fazer um autorretrato e pinta Judite não à semelhança dessa
piedosa viúva judia que, com coragem e fé em Deus, se infiltra no acampamento
inimigo, seduz e degola o general de Nabucodonosor, e liberta o seu povo das
garras assírias, mas, antes, à imagem de uma ex-namorada que lhe tinha sido
infiel. É mesmo de perder a cabeça! No caso, quem se põe a coçar a cabeça são as plateias de Savall. Não é o
ISIS que corta pescoços? Não é isto um alerta, face às ambições imperialistas
de Erdogan? O ato de Judite, que fez escorrer sangue naqueloutro imortal quadro
de Artemisia Gentileschi, não é sobretudo uma alegoria feminista? Ao som das
trompetas, não devem os catalães ir para a rua? Sabe Savall e sabia Vivaldi: a
arte não é um espelho, é uma Casa de Espelhos – quanto mais procuramos o nosso
reflexo, menos nítidos vamos ficando.
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