30 de novembro de 2019

Ravel/Stravinsky (Warner, 2019)

Há uns anos, a propósito de uma reedição de “Paris 1919”, John Cale descrevia-o como “a forma mais simpática possível de se dizer uma coisa feia”. Referia-se, como é óbvio, à Conferência de Paz que esteve na origem da ratificação do Tratado de Versalhes, essa catastrófica dança das cadeiras entre as principais potências europeias que foi aproximando paulatinamente do abismo um continente inteiro, até, por fim, num gesto repentino, nele o lançar. Entre muitas outras hipóteses, a banda sonora para tão suicidária coreografia foi composta precisamente em 1919 – e apesar do seu autor, Ravel, negar qualquer ligação à atualidade, chamava-se, de modo muito sugestivo, “La valse”. Não admira que, ao tocá-la, Beatrice Rana pareça ter em mente o que Dimitri Tiomkin, ao serviço de Hitchcock, fez à valsa de “A Viúva Alegre”, de Lehár, em “Mentira” (1943) – mais coisa, menos coisa, o que disse Cale do seu álbum. “A peça final [deste disco] é ‘La valse’, um poema coreográfico que dá corpo à experiência devastadora da Primeira Guerra Mundial e reflete um período de mudanças radicais”, avança, em notas de apresentação, antes de insinuar que o seu vertiginoso andamento faz alusão a uma espécie de labirinto de espelhos giratório e à beirinha de se estilhaçar.

É um retrato eminentemente psicológico, porventura poluído por tudo aquilo que, acerca da época, hoje, se sabe, mas o mais fascinante é o modo como se vai prolongando até se apossar do sentido de “Miroirs” (ou seja, “Espelhos”). Pois, na verdade, e não obstante a sua rígida estrutura, a italiana projeta nos seus constituintes aquelas partículas que, lá está, para ser literal, levam a que na superfície de um espelho propriamente dito se decomponha o nitrato de prata. Ouvindo-a, como no tempo de Richter, é impossível não pensar em “Espelho”, de Sylvia Plath: “Sou de prata e exato/ Não tenho ideias preconcebidas/ Tudo o que vejo aceito sem reservas/ Tal como é, enturvado por aversão ou amor.” Quem se pôs a olhar para o seu reflexo foi Stravinsky, em 1921, para compor uma versão para piano de “Petrushka” – agora, nas mãos de Beatrice, tem todos os seus mistérios revelados, e o que vem à memória é Beatriz, de “A Divina Comédia”, a explicar a Dante a razão das manchas escuras da lua recorrendo a uma demonstração com três espelhos. Tão bom, que põe a cabeça a andar à roda.

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