Há uns anos, a propósito de uma reedição de “Paris
1919”, John Cale descrevia-o como “a forma mais simpática possível de se dizer
uma coisa feia”. Referia-se, como é óbvio, à Conferência de Paz que esteve na
origem da ratificação do Tratado de Versalhes, essa catastrófica dança das
cadeiras entre as principais potências europeias que foi aproximando
paulatinamente do abismo um continente inteiro, até, por fim, num gesto
repentino, nele o lançar. Entre muitas outras hipóteses, a banda sonora para
tão suicidária coreografia foi composta precisamente em 1919 – e apesar do seu
autor, Ravel, negar qualquer ligação à atualidade, chamava-se, de modo muito
sugestivo, “La valse”. Não admira que, ao tocá-la, Beatrice Rana pareça ter em
mente o que Dimitri Tiomkin, ao serviço de Hitchcock, fez à valsa de “A Viúva
Alegre”, de Lehár, em “Mentira” (1943) – mais coisa, menos coisa, o que disse
Cale do seu álbum. “A peça final [deste disco] é ‘La valse’, um poema
coreográfico que dá corpo à experiência devastadora da Primeira Guerra Mundial
e reflete um período de mudanças radicais”, avança, em notas de apresentação,
antes de insinuar que o seu vertiginoso andamento faz alusão a uma espécie de
labirinto de espelhos giratório e à beirinha de se estilhaçar.
É um retrato
eminentemente psicológico, porventura poluído por tudo aquilo que, acerca da
época, hoje, se sabe, mas o mais fascinante é o modo como se vai prolongando
até se apossar do sentido de “Miroirs” (ou seja, “Espelhos”). Pois, na verdade,
e não obstante a sua rígida estrutura, a italiana projeta nos seus
constituintes aquelas partículas que, lá está, para ser literal, levam a que na
superfície de um espelho propriamente dito se decomponha o nitrato de prata.
Ouvindo-a, como no tempo de Richter, é impossível não pensar em “Espelho”, de
Sylvia Plath: “Sou de prata e exato/ Não tenho ideias preconcebidas/ Tudo o que
vejo aceito sem reservas/ Tal como é, enturvado por aversão ou amor.” Quem se
pôs a olhar para o seu reflexo foi Stravinsky, em 1921, para compor uma versão
para piano de “Petrushka” – agora, nas mãos de Beatrice, tem todos os seus
mistérios revelados, e o que vem à memória é Beatriz, de “A Divina Comédia”, a
explicar a Dante a razão das manchas escuras da lua recorrendo a uma
demonstração com três espelhos. Tão bom, que põe a cabeça a andar à roda.
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