23 de novembro de 2019

Eve Risser “Aprés Un Rêve” (Clean Feed, 2019)


Na sequência inicial de “A Ciência dos Sonhos” (2006), a personagem de Gael García Bernal salta de instrumento em instrumento como quem produz em tempo real a banda sonora do seu próprio programa de televisão até, por fim, se instalar atrás de um pequeno balcão de cozinha: “Esta noite, vou explicar-vos como se preparam os sonhos”, diz. “Primeiro, pegamos em pensamentos soltos; depois, juntamos um punhado de recordações do próprio dia, misturadas com lembranças do passado… Amor, amizades, relações, mais as canções que se escutaram, as coisas que se viram.” Podia estar a descrever aquela profissão de fé em processos inconscientes em que a improvisação geralmente assenta e da qual Eve Risser parece comungar: na sua discografia a solo, este “Aprés un rêve”, que traz à memória Fauré, vem no seguimento de “Des pas sur la neige” (2015), ensaio que pelo menos em título se diria inspirado em Debussy. Mas, como é óbvio, a pianista não parte dos outros para chegar a si, como uma intérprete, mas, sim, de si para chegar aos outros, como uma autora – e de nada adianta procurar indícios dos seus antepassados diretos nestes compassos.

Na verdade, fazendo jus a tamanho simbolismo, Risser continua a preferir a alusão à afetação, a suspeição à certeza. O que não quer dizer que a sua ação não tente reproduzir a de Fauré e demais românticos, com o Mussorgsky de “Rêverie” (1865), como convém, a dar mostras de ter algo a ver com isto (ouça-se bem o primeiro motivo melódico do disco): colocar em música a gémula do êxtase que, por vezes, floresce na proporção inversa da nossa vigilância! Para tal, integrando elementos em que a aleatoriedade e a indeterminação têm a primazia na sua atuação (o CD foi gravado ao vivo a 16 de fevereiro de 2018, na FGO Barbara, em Paris), a francesa afasta-se da técnica convencional em prol da do piano preparado, de modo a produzir o que caracteriza como “transe mecânico para piano selvagem”. O Henry Cowell de “Banshee” (1925) não anda longe, mas o John Cage de “Bacchanale” (1940) e “The Perilous Night” (1944) está ainda mais perto, apesar de Risser, com certeza, e não só pelo nome, dele preferir pequenas pérolas, como “Dream” (1948). Já que voltámos ao tema, a meio de “Après un rêve”, e no seu momento mais onírico, passe a redundância, é num discípulo de Cage que se pensa: no Harold Budd de “The Pavilion of Dreams” (1978). Como num sonho tão molhado que até oxida as cordas do piano (soam a enferrujados quissanjes, mais do que a outra coisa qualquer), realmente só tem um defeito: em fugazes 24 minutos, o pouco que dura.

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