Em 1998, a propósito de um concerto a quatro mãos na cidade, Danilo Pérez e Jacky Terrasson explicavam a “The Houston Press” o quão desafiante são os duetos de piano: “Se não tiveres dois músicos dispostos a partilhar, pode mesmo tornar-se um desastre – são muitas notas, muitas teclas. Tem de se resistir à tentação de ocupar o lugar vazio. Mas também não pode ir cada um para seu lado. É aí que se dão choques frontais. Tem de se ouvir bem o que o outro tem para dizer. E fica-se sensível a coisas em que normalmente nem se tem de pensar. É uma questão de abnegação e de generosidade. Com dez dedos é normal que exageres. Se tivesses quatro era mais fácil, mas assim é complicado!” Porque se trata, então, de espaço e de escuta, chegada a sua vez, não admira que Sanchez e Crispell tenham ido num par de temas buscar inspiração a escritos do espanhol Santiago Ramón y Cajal, que há mais de um século sugeria que o córtex cerebral se assemelhava a “um jardim cultivado com inúmeras árvores que multiplicam os seus ramos, aprofundam as suas raízes e produzem flores e frutos progressivamente mais requintados”, e aos avanços no domínio do sistema auditivo do alemão Hans Held, que respetivamente batizaram como ‘Lobe of the Fly’ e ‘Calyces of Held’. Ou seja, emprestada à caracterização que Ramón y Cajal fez do centro das capacidades intelectuais, a presunção, no caso, será a de que o piano ainda “contém continentes por explorar e enormíssimas extensões de terreno ignorado.” Nas suas mãos, assim é, de facto: mesmo que se pudesse criar uma ligação entre ‘Lobe of the Fly’ e uma obra como “Do Diário de uma Mosca”, de Béla Bártok, o metafórico frenesi agora retratado é todo ele excêntrico, imprevisível, como se, embaladas pelas suas fontes, as pianistas se dispusessem a dissecar cada peça e a estimular-lhe as sinapses. Há, antes, quem o tenha feito: o Stanley Cowell e o Dave Burrell de “Questions/Answers” (Trio, 1973) vêm à memória, bem como o Fred Van Hove e o Christian Leroy que, em 1982, concluíram: ‘On s’entend… C’est curieux’. Não de modo tão irreprimivelmente onírico quanto aqui, os dendritos encantados pelo desconhecido.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
11 de dezembro de 2020
Angelica Sanchez, Marilyn Crispell “How To Turn The Moon” (Pyroclastic, 2020)
Hallelujah Chicken Run Band "Take One" (Analog Africa, re. 2020)
Há 40 anos, cantava-se: “Natty Dread it in-a Zimbabwe/ Set it up in Zimbabwe/ Mash it up-a in-a Zimbabwe/ Africans a-liberate Zimbabwe/ Mash it up in-a Zimbabwe/ Natty trash it in-a Zimbabwe/ I'n'I a-liberate Zimbabwe”. Isto (quer dizer, a canção ‘Zimbabwe’ propriamente dita), na voz de Bob Marley, porque de zimbabuanos como Four Brothers, Black Spirits, Devera Ngwena Jazz Band, Mawonera Superstars ou Thomas Mapfumo pouco se sabia. Bem, do último imaginava-se que estivesse ocupado a arrancar a mordaça que o regime de Ian Smith lhe impunha – quando lançou “Hokoyo!” (1978), com a Acid Band, foi conduzido ao calaboiço como um perigosíssimo insurgente. Pois, em abril de 1980, nas celebrações oficiais da independência do país, no estádio Rufaro, ninguém o haveria de calar – ninguém, exceto Marley, claro, que fretou um Boeing 707 com dinheiro do próprio bolso e transportou os Wailers, 12 técnicos, 21 toneladas de equipamento e um sistema de som de 35.000 watts para poder entrar na festa. Duvida-se que tenha prestado atenção à atuação de Mapfumo – que transferia para as competências de um conjunto de música moderna o distinto padrão harmónico da música para mbira, digno de um carrossel –, mas naquele mar de gente com o rosto de Mugabe estampado em t-shirts ninguém se parecia importar muito: era o futuro que interessava. O ponto em que a cidade de Salisbury seria rebatizada como Harare, em que o estádio em que estavam viria, de facto, a chamar-se Rufaro e em que só voltariam a ouvir falar em Rodésia ao assistir à segunda temporada de “The Crown”. Infelizmente, para trás ficava também aquele tempo em que Mapfumo militou na extraordinária Hallelujah Chicken Run Band, ao lado de gente como Abdull Moosa, Elijah Josam, Joshua Dube, Wilson Jubane, Robert Nekati, Patrick Kabanda, Robson Boora ou Daram Kalanga, e em que procedia, já, à eletrificação do repertório tradicional dos xona. É o instantâneo que “Take One” capta, em 14 canções que do vinil vieram e ao vinil tornam, mais de 40 anos depois. Seria apropriado que se intitulasse take two (a antologia teve uma primeira edição em CD em 2006, com 18 temas), mas a verdade é que é importante o suficiente para recorrer aos takes que for preciso.
27 de novembro de 2020
Doug Carn “Spirit of the New Land” (Black Jazz, re. 2020) & The Awakening “Hear, Sense and Feel” (Black Jazz, re. 2020)
Charpentier: Messe à Quatre Choeurs (Harmonia Mundi, 2020)
20 de novembro de 2020
Soul Love Now: The Black Fire Records Story, 1975-1993 (Strut, 2020)
13 de novembro de 2020
Shostakovich: Piano Quintet & Seven Romances (Harmonia Mundi, 2020)
Charles Lloyd “8: Kindred Spirits, Live From The Lobero Theatre” (Blue Note, 2020)
É verdade: como o mais gasoso em Lester Young, oceânico em John Coltrane, mucoso em Sonny Rollins, dá voz a um nicho em que se reduz dióxido de carbono ao estado líquido e que se diria existir exclusivamente na sua traqueia. Aqui, da altura em que despontou, surge ‘Dream Weaver’, em que Lloyd, Eric Harland (bateria), Reuben Rogers (contrabaixo), Gerald Clayton (piano) e Julian Lage (guitarra elétrica) parecem trocar os respetivos instrumentos por espanta-espíritos – e, como um médium, Lage vê-se possuído pelo fantasma de Gábor Szabó, que tanto tocou o tema. Do alinhamento constam igualmente versões oraculares de ‘Requiem’, ‘La Llorona’ e ‘Part 5, Ruminations’ – na sua discografia, estreados em 1992, 2010 e 2017, e que, agora, aparecem quase com tantos borbotos quanto os que tem o casaquinho de malha com que Lloyd subiu ao palco, apesar de ele não se querer sentir demasiado confortável, claro. “Isto são veículos para explorar o desconhecido, para aprofundar o mistério”, explicava, em junho, à “Jazzwise”. “Sou um sonhador, e a música é o que me foi dando de algum modo a inspiração e o consolo. E eu ainda estou numa missão: quero partilhá-la, mesmo se, com o confinamento, não o possa fazer. Vivemos tempos de peste”, dizia ele. Toca ‘La Llorona’ como que a meditar, em silêncio, e nunca a letra da canção fez tanto sentido: “Dicen que no tengo duelo, Llorona/ Porque no me ven llorar/ Hay muertos que no hacen ruido, Llorona/ ¡Y es más grande su penar!”