Heras-Casado faz tantos milagres com cores
primárias que não é difícil imaginá-lo de batuta numa mão e paleta na outra, ligeiramente
encurvado no estrado, a aplicar tinta com todo o cuidado nas orquestras que
dirige – isto, não dispensasse ele o acessório e, na realidade, enquanto
maestro, não se parecesse mais com um instrutor de Tai Chi. Seja como for, o
ponto não será esse, mas, sim, o de ilustrar o quanto desse magistério se dilui
quando recorre à sépia. É o que em certa medida se dá na gravação da ‘nona’ de
Beethoven com a Orquestra Barroca de Friburgo, em que a segurar em alguma coisa
seria numa seringa, que é para ver se assim se explica a privação mais ou menos
completa da sensibilidade geral entre essa gente que à sua frente deve ter dado
os arcos de pau-brasil por muito mal empregues. Trata-se de uma interpretação
desprovida, até, daquele instinto ferino que se lhe reconhece – aqui, de modo
perverso, está sobretudo feral, e aproximar-se de mansinho do “Hino à Alegria”,
como num cortejo fúnebre, prova-se grotesco. Salva-se a “Fantasia Coral”, no disco,
com Kristian Bezuidenhout a tirar proveito dos prodígios previamente ensaiados,
quando tornou a lembrar que Beethoven foi sempre mais convincente a falar no
singular do que no plural – de facto, em tempos recentes, e menos ainda neste
ano em que se assinala o ducentésimo quinquagésimo aniversário do seu
nascimento, com tudo feito à pressa, não há memória de um registo tão capaz de
chegar ao âmago do compositor quanto o destes concertos para piano em que tudo canta.
Até a madeira do pianoforte, como castanholas.
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