Em 1973, em conversa com Michael
Watts, do “Melody Maker”, Miles Davis explicava por que razão não tinha
incluído créditos na contracapa de “On the Corner” (1972): “Para os críticos
não perceberem muito bem que instrumentos estão a ser usados. Desta vez têm de
puxar pela cabeça, e interrogar-se: ‘Que som é este?’, ‘E este?’. Nem vou tornar
a pôr fotografias minhas nas capas dos discos. A fotografia morreu, man! Fechas os olhos e estás lá.” Ora,
está aí um bom mote para “Seeing Through Sound” – após “Listening to Pictures”
(2018), o segundo volume do que Jon Hassell caracteriza como série Pentimento (na pintura, assim se designa
o processo pelo qual a passagem do tempo – ou, em caso de urgência, um raio
infravermelho – põe a nu numa tela vestígios de uma composição anterior). Nessa
perspetiva, o perfeccionismo de Hassell aproxima-o de Pierre Bonnard – alguém que
tinha por hábito retocar quadros seus mesmo depois de estarem devidamente pendurados
na parede de uma galeria (com os vigias distraídos, no Musée du Luxembourg, por
exemplo, sacava do estojo de tinta e aplicava uma pincelada furtiva aqui, outra
acolá). O que traz novamente à memória Miles Davis: na sua autobiografia, a
propósito de “On the Corner”, dizia que tinha aprendido com Stockhausen que, na
verdade, a música é um “sistema circular de subtração e adição” sem fim à
vista.
Pois bem, quem teve aulas com
Stockhausen foi Hassell, e, em março de 2013, quando lhe perguntei se não se
poderia considerar que a sua obra pegou nas coisas exatamente onde o Miles de
“On the Corner” as tinha deixado ele despachou-me: “Tudo começa pela imitação,
sim. E, com sorte, ouvindo o que nos dizem os sentidos, construir-se-á o
indivíduo. Mas em 1973 eu estava imerso em raga indiana. Queria tocar algo de
único à trompete e pensava de maneira vertical, tipo: façam aqui um corte
transversal que vos será impossível dizer de quando ou de onde isto vem.” É um
bom modo de descrever o que se passa em “Seeing Through Sound”, com um ou outro
marcador a indicar as coordenadas das envolventes galáxias tonais que Hassell mantém
a girar em torno do buraco negro da convenção. Um desses marcadores será o dos
créditos, lá está – mas até isso, no caso, remete para uma técnica de ofuscação
(instrumentos atribuídos a gente como John von Seggern, Rick Cox, Eivind
Aarset, Hugh Marsh, Lightwave, Michel Redolfi, Jan Bang ou Adam Rudolph podem
ter sido captados agora ou em qualquer ponto das últimas três décadas). “Veja isto
como se eu fosse um decorador, num espaço vazio, rodeado dos objetos de uma
vida”, dizia-me então. “Coloco um em determinado sítio e, de seguida, examino a
minha coleção e penso: o que é que vai bem com aquilo? Se pensarmos desta
forma, não temos de nos relacionar com um estilo específico. Não é ‘jazz’, ‘clássico’,
‘eletrónico’, ‘etno’… É só uma coisa bonita que para ali estava esquecida.” Já
não.
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