8 de agosto de 2020

Jon Hassell “Seeing Through Sound” (Ndeya, 2020)

Em 1973, em conversa com Michael Watts, do “Melody Maker”, Miles Davis explicava por que razão não tinha incluído créditos na contracapa de “On the Corner” (1972): “Para os críticos não perceberem muito bem que instrumentos estão a ser usados. Desta vez têm de puxar pela cabeça, e interrogar-se: ‘Que som é este?’, ‘E este?’. Nem vou tornar a pôr fotografias minhas nas capas dos discos. A fotografia morreu, man! Fechas os olhos e estás lá.” Ora, está aí um bom mote para “Seeing Through Sound” – após “Listening to Pictures” (2018), o segundo volume do que Jon Hassell caracteriza como série Pentimento (na pintura, assim se designa o processo pelo qual a passagem do tempo – ou, em caso de urgência, um raio infravermelho – põe a nu numa tela vestígios de uma composição anterior). Nessa perspetiva, o perfeccionismo de Hassell aproxima-o de Pierre Bonnard – alguém que tinha por hábito retocar quadros seus mesmo depois de estarem devidamente pendurados na parede de uma galeria (com os vigias distraídos, no Musée du Luxembourg, por exemplo, sacava do estojo de tinta e aplicava uma pincelada furtiva aqui, outra acolá). O que traz novamente à memória Miles Davis: na sua autobiografia, a propósito de “On the Corner”, dizia que tinha aprendido com Stockhausen que, na verdade, a música é um “sistema circular de subtração e adição” sem fim à vista.

Pois bem, quem teve aulas com Stockhausen foi Hassell, e, em março de 2013, quando lhe perguntei se não se poderia considerar que a sua obra pegou nas coisas exatamente onde o Miles de “On the Corner” as tinha deixado ele despachou-me: “Tudo começa pela imitação, sim. E, com sorte, ouvindo o que nos dizem os sentidos, construir-se-á o indivíduo. Mas em 1973 eu estava imerso em raga indiana. Queria tocar algo de único à trompete e pensava de maneira vertical, tipo: façam aqui um corte transversal que vos será impossível dizer de quando ou de onde isto vem.” É um bom modo de descrever o que se passa em “Seeing Through Sound”, com um ou outro marcador a indicar as coordenadas das envolventes galáxias tonais que Hassell mantém a girar em torno do buraco negro da convenção. Um desses marcadores será o dos créditos, lá está – mas até isso, no caso, remete para uma técnica de ofuscação (instrumentos atribuídos a gente como John von Seggern, Rick Cox, Eivind Aarset, Hugh Marsh, Lightwave, Michel Redolfi, Jan Bang ou Adam Rudolph podem ter sido captados agora ou em qualquer ponto das últimas três décadas). “Veja isto como se eu fosse um decorador, num espaço vazio, rodeado dos objetos de uma vida”, dizia-me então. “Coloco um em determinado sítio e, de seguida, examino a minha coleção e penso: o que é que vai bem com aquilo? Se pensarmos desta forma, não temos de nos relacionar com um estilo específico. Não é ‘jazz’, ‘clássico’, ‘eletrónico’, ‘etno’… É só uma coisa bonita que para ali estava esquecida.” Já não.

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