Há pouco mais de dez anos, como naquele segmento da
série “Goodness Gracious Me” em que, se fossemos a ver, tudo, mas mesmo tudo,
de Shakespeare e Super-Homem à Rainha de Inglaterra e Jesus Cristo, tinha
origem na Índia, era Mulatu Astatke que me explicava o seguinte: “É improvável
encontrar um músico etíope que assuma influências. Antes de mais, porque lhe
parecerão inexistentes. Tudo aquilo com que nesse capítulo se confronte
afigurar-se-á uma emanação africana: mostrem-lhe bossa nova, que dirá tratar-se
de um ritmo do sul da Etiópia; ponham-no a ouvir Debussy, que será levado a
crer que o francês tinha como assunto a nossa tradição copta; e o mesmo se
aplica ao jazz, com uma escala diminuta idêntica à do nosso folclore; e à
música andina, que é como a dos konso.
Não há hipótese.” Quer dizer, havia uma exceção: o reggae – “Como toda a gente
sabe, o reggae nasce da música dhaanto,
na Somália.” Tendo escutado mentalmente um daqueles Ba-Dum-Tss com que os
bateristas pontuam as anedotas nos programas de humor, concluí que isso queria
dizer que um músico etíope tinha de passar o resto da vida a tocar música
etíope. Confirma-o este extraordinário “Yene Mircha” (“A Minha Escolha” ou “À
Minha Maneira”, em amárico), com Mergia a sujeitar até a mais fantasiosa das
práticas a esse modo musical tão peculiar, tão seguro, mas de aparência tão irresoluta,
e a insistir em trocar as voltas a quem escreve coisas como: “Nota-se a infusão
do rock e do reggae” (Chris May, in
“All About Jazz”) ou “a concluir, temos o órgão funk de ‘Shemendefer’” (Ammar
Kalia, in “The Guardian”). Aliás, ainda
que, em 1981, para fugir ao regime de Mengistu, tenha efetivamente trocado a
Etiópia pelos EUA, não seria agora, ao pegar num daqueles temas com que, em
2005, Teddy Afro marcou as legislativas etíopes, que Mergia iria trocar musicalmente
a Etiópia pelos EUA – o original, a partir da utopia ferroviária (leia-se chemin de fer), tem um narrador que crê
na possibilidade de ultrapassar as fronteiras que a intolerância lhe impõe,
desde que lhe seja permitido fazer as coisas à sua maneira, que é, lá está,
como foram sempre feitas na Etiópia. Mergia assina por baixo.
Sem comentários:
Enviar um comentário