29 de agosto de 2020

Hailu Mergia “Yene Mircha” (Awesome Tapes From Africa, 2020)

Há pouco mais de dez anos, como naquele segmento da série “Goodness Gracious Me” em que, se fossemos a ver, tudo, mas mesmo tudo, de Shakespeare e Super-Homem à Rainha de Inglaterra e Jesus Cristo, tinha origem na Índia, era Mulatu Astatke que me explicava o seguinte: “É improvável encontrar um músico etíope que assuma influências. Antes de mais, porque lhe parecerão inexistentes. Tudo aquilo com que nesse capítulo se confronte afigurar-se-á uma emanação africana: mostrem-lhe bossa nova, que dirá tratar-se de um ritmo do sul da Etiópia; ponham-no a ouvir Debussy, que será levado a crer que o francês tinha como assunto a nossa tradição copta; e o mesmo se aplica ao jazz, com uma escala diminuta idêntica à do nosso folclore; e à música andina, que é como a dos konso. Não há hipótese.” Quer dizer, havia uma exceção: o reggae – “Como toda a gente sabe, o reggae nasce da música dhaanto, na Somália.” Tendo escutado mentalmente um daqueles Ba-Dum-Tss com que os bateristas pontuam as anedotas nos programas de humor, concluí que isso queria dizer que um músico etíope tinha de passar o resto da vida a tocar música etíope. Confirma-o este extraordinário “Yene Mircha” (“A Minha Escolha” ou “À Minha Maneira”, em amárico), com Mergia a sujeitar até a mais fantasiosa das práticas a esse modo musical tão peculiar, tão seguro, mas de aparência tão irresoluta, e a insistir em trocar as voltas a quem escreve coisas como: “Nota-se a infusão do rock e do reggae” (Chris May, in “All About Jazz”) ou “a concluir, temos o órgão funk de ‘Shemendefer’” (Ammar Kalia, in “The Guardian”). Aliás, ainda que, em 1981, para fugir ao regime de Mengistu, tenha efetivamente trocado a Etiópia pelos EUA, não seria agora, ao pegar num daqueles temas com que, em 2005, Teddy Afro marcou as legislativas etíopes, que Mergia iria trocar musicalmente a Etiópia pelos EUA – o original, a partir da utopia ferroviária (leia-se chemin de fer), tem um narrador que crê na possibilidade de ultrapassar as fronteiras que a intolerância lhe impõe, desde que lhe seja permitido fazer as coisas à sua maneira, que é, lá está, como foram sempre feitas na Etiópia. Mergia assina por baixo.

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