Como todo
o artista na vanguarda do seu tempo, Schubert (1797-1828) deixou-se atrair
pelas mais construtivas e destrutivas forças. E, por vezes, escutar as suas
últimas obras é pressentir, no mesmo meditativo solilóquio, um período
histórico a deslizar para o abismo civilizacional ou a caminhar para o êxtase
de que fala a escatologia cristã – trata-se de uma tremenda ilusão que
engendrou seguindo impulsos catárticos, mas que, na realidade, se traduzia na
suspensão da ação entre cada instância. O emparelhamento de duas das suas mais
celebradas e gravadas sonatas para piano – a D 845 em lá menor e a D 960 em si
bemol maior – permite lembrar essa tendência que, num contexto canónico, emerge
do Beethoven programaticamente racional e culmina no Wagner oniricamente apoteótico.
Maria João Pires, que regressa a este repertório de ocasionalmente desesperada
introspeção, privada sutileza e definitiva ambiguidade, ignora o violento
sentimentalismo que domina as manifestações criativas contemporâneas. Aliás, qualquer
nota por si tocada – por instantes numa lógica de frustrante inevitabilidade –
é um concentrado de simplicidade e candura, sintetizando numa prática cristalina,
e possivelmente neutral, aspetos espirituais (já sublinhados por Kempff ou
Richter) e poéticos (conforme os exprimiu Uchida), contornando a radiante
desolação com que Lupu encarava este material ou a turbulenta melancolia que aí
encontrava Pollini. Com uma translúcida noção de textura e absoluto comando das
possibilidades discursivas das peças, a sua interpretação possui apenas a
idiossincrasia e extemporaneidade subjacentes às pautas, com paradigmática
resolução nos scherzo, abordados como
quem no fio do horizonte acha enfim o ponto em que deve fixar o olhar, sem
saber se o que vê pertence ao seu passado ou ao seu futuro.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
27 de abril de 2013
Entrevista a Bassekou Kouyate, por ocasião de “Jama Ko” (Out Here, 2013)
Estamos em fevereiro num hotel da
Avenida de Roma – a comitiva de Kouyaté, aterrada de triunfante digressão pelo
norte da Europa e acabada de contratar para o próximo Festival Músicas do Mundo
de Sines, faz escala em Lisboa no regresso a Bamako – e cumprimentamo-nos com
um sorriso agridoce. O momento é de celebração – o novo álbum confirma-se um
fascinante manifesto de esperança e integridade – mas, ao mesmo tempo, chegam-nos
de Tombuctu e Gao inquietantes notícias. Discutimos o pouco que se vai sabendo
e Bassekou, circunspeto, reflete: “Preocupa-me a perda de soberania do meu país
– e que este não seja tanto um caso isolado quanto um presságio para coisas
piores”. O maliano – que produziu um tratado de sincretismo que iguala aqueloutros
outrora postulados por Rail Band, Toumani Diabaté, Ali Farka Touré ou Oumou
Sangaré – elenca os abusos que, ao abrigo da mais ortodoxa interpretação da lei
islâmica, guerrilheiros tuaregues impuseram a concidadãos seus: “Uma terrível
violência contra mulheres, detenções arbitrárias, flagelações públicas, lapidações,
decapitações, interdições de fumar, beber, ouvir música, enquanto nos campos de
treino em redor das aldeias drogavam jovens de 14 ou 15 anos, metendo-lhes nas
mãos dinheiro, uma kalashnikov e
prometendo-lhes o paraíso”. E continua: “Ora isto não é de bom muçulmano. É
puro banditismo. Falo de gente que entra armada em mesquitas, que torra livros
sagrados, que trafica – foi um ano infernal”. Ainda que sujeita a inúmeros
contratempos, nomeadamente em consequência de atentados suicida, a investida
francesa então em curso, tinha, segundo a retórica em voga, ‘libertado’ as
principais cidades da região da ocupação pelas tropas do Ansar Dine ou do MUJAO.
“E”, prossegue, “tudo isto porque tínhamos um presidente [Amadou Toumani Touré,
deposto em Março de 2012] que não queria bombardear o seu próprio povo, nomeando
até Ag Ahaly [líder do Ansar Dine] para um cargo diplomático. Porque isto não é
um problema étnico!”. Kouyaté estava em estúdio na capital aquando do golpe
militar: “tinha convidados vindos de fora… jornalistas, produtores, engenheiros
de som, e eu aterrorizado com cortes de eletricidade, recolher obrigatório, balas
perdidas, soldados amotinados”. Pressente-se nas suas palavras um profundo
despeito, mas por entre o caos encontrou motivação: “quis, com este disco
reunir a minha mulher [a cantora Amy Sacko], os meus filhos e amigos [de Taj
Mahal à tuaregue Khaira Arby], e falar daquilo que anda há séculos a ser representado
na nossa arte: porque a solução sabemo-la nós, músicos, que somos como um país
à parte”. Comovente e panegírico símbolo para a paz, “Jama Ko” é uma porta de
acesso a uma biblioteca organizada em torno do tema da tolerância. “Ouçam”,
conclui, “porque quando nos calarmos é sinal de que o mundo – ao contrário das
feridas nos nossos corpos – já não está capaz de se curar”.
Peter Evans “Zebulon” (More is More, 2013”)
Acaba de se confirmar a sua presença
em Portugal no próximo “Jazz em Agosto” – no qual tocará na versão ampliada do
trio The Thing, de Mats Gustafsson, e depois enquanto líder de um octeto – e ainda
há pouco andou por cá, convidado por Rodrigo Amado para uma atuação e gravação
com o Motion Trio. Nessa ocasião, no Teatro Maria Matos, revelou-se um soprador
tão ruminante quão expressionista, sonorizando cada nota desde o seu gasoso
despontar bronquial até à sua liquefação em ruidosas cusparadas. Evans aparenta
saber que uma contorcionista demonstração de técnica, ainda que frívola, se
pode provar irresistível, e, sob essa perspectiva, mais não fez do que prolongar,
no trompete, uma tradição que privilegiou frequentemente o episódico e o
anedótico, o dito mordaz, o aparte humorístico, mas também, porventura de forma
punitiva no contexto de uma manifestação coletiva, a mais loquaz tagarelice. Quanto
muito, correspondendo em palco ao preceito com que nomeou a sua própria editora
– a More is More –, procedeu com zelo maximal até quando examinava o potencial
expressivo dos pistões e do bocal do seu instrumento, numa polifónica autópsia
a hálitos e humidades. Mas, na verdade, esse será apenas um aspeto – talvez
conscientemente superficial – na sua idiomática articulação. Porque “Zebulon”,
um empático registo ao vivo com o baterista Kassa Overall e o contrabaixista
John Hébert, sustenta o argumento de que é através de uma construção mais esquematicamente
arquitetónica e narrativa que, na circunstância da improvisação, melhor exprimirá
uma distinta filosofia de valores morais. Aqui, em quatro longos temas, expõe
um denso fluxo de ideias de maneira irrevogável, numa epidémica coligação de
materiais canónicos e cuidadosamente compostos, cuja rapidez de execução sugere
espontaneidade mas que dependem antes de uma astuta e fulgurante deliberação.
Puro jazz.
20 de abril de 2013
Charles Lloyd/Jason Moran “Hagar’s Song” (ECM, 2013) & Charles Lloyd “Quartets” (5CD ECM, 2013)
Aos 75 anos, Charles Lloyd é um
sobrevivente: raro asceta num meio dado ao indulgente culto da vulgaridade, humilde
e reverente por entre zelotes e ególatras, modesta figura na congregação de megalómanos
em que se transformou a cena mundial do jazz. Tudo isso, em “Hagar’s Song”, se
nota pela forma em que subordina o virtuosismo a determinada disposição ou pela
maneira em que se acomoda à natureza dos materiais de Strayhorn, Ellington,
Gershwin, Dylan ou Brian Wilson, em vez de os moldar à sua imagem, relembrando
que essas subtis emanações ficam para a imortalidade. A sua eloquência na suíte
titular – que dedica à trisavó, aos dez anos comprada por um esclavagista do
Tennessee – dispensa ornamentação e hipérbole e é uma tão violenta quão contemplativa
restituição da memória que jamais incorre na paródia ou no proselitismo; isto
é, a paixão com que Lloyd toca não implica uma escultórica fisicalidade nem pretende
ocupar à força o ouvinte – pelo contrário, cada nota aparenta formular-se tal
como havia despontado no seu espírito. E quase sempre assim tem sido há 25
anos, desde que reuniu o quarteto que marcou o seu regresso à música.
Muito se tem escrito acerca da fase
– referida como de “reclusão”, “sabática” ou, esotericamente, de “viagem
interior” – que, em 90, originou sebastiânica receção a “Fish Out of Water”. Dizem
as crónicas – e algumas permanecem enleadas nesse equívoco – que Lloyd esteve
20 anos sem gravar, eclipsando-se após uma meteórica ascensão ao panteão
comercial do jazz, quando “Forest Flower”, registado em 66 no Festival de
Monterey, vendeu mais de um milhão de cópias e garantiu ao seu quarteto – o de Keith
Jarrett, Cecil McBee e Jack DeJohnette – uma aclamação apenas reservada àquelas
bandas (Grateful Dead, Jefferson Airplane, Byrds, Santana) com que passou a disputar
cartaz no Auditório Fillmore. Numa entrevista de maio de 2004 ao “All About
Jazz”, sintetizou nestes termos a decisão de se retirar: “era uma bomba-relógio
prestes a detonar, estava acabado, farto do negócio da música, desiludido, tinha
perdido o contato com tudo e todos, abusava de várias substâncias e precisava
desesperadamente de trabalhar no meu carácter. A única coisa a fazer era afastar-me”.
Na verdade, talvez por necessidade
terapêutica, o que isto significa é que, a partir de 70, desmembrado o seu
grupo, privilegiou tarefas acessórias em estúdio – com Canned Heat, Doors,
Roger McGuinn ou, crucialmente, dada a afinidade com Mike Love, ao lado dos Beach
Boys – e desenvolveu projetos que possibilitaram uma mais ativa prossecução dos
seus novos interesses (hinduísmo, vegetarianismo, meditação transcendental). Em
“Moon Man” ou “Waves” canta como um vagabundo queimado pelo ‘verão do amor’,
secundado por John Cipollina, McGuinn, Love, Al Jardine e os irmãos Brian e Carl
Wilson; em “Geeta”, de 73, investe num aguado misticismo por temas dos Rolling
Stones; com “Weavings”, de 78, ensaia o LP de smooth jazz pelo qual, obviamente, não deseja ser recordado, acercando-se
de Grover Washington Jr. ou David Sanborn. Ao longo dessa década é ignorado por
imprensa, público e músicos de jazz, até que lhe bate à porta Michel
Petrucciani – o par de discos que gravaram entre 82 e 83 representa o primeiro
retorno de Lloyd às lides de antanho. “Quartets”, que une os seus cinco álbuns iniciais
na ECM, publicados entre 90 e 97, simboliza o segundo.
Em “Fish Out of Water” – e o título
só se justifica se pensarmos na coetânea produção de Lovano, Berne, Steve
Coleman, Ehrlich, Ware, Perelman ou Eskelin, pois de nenhum outro grande
saxofonista do período Lloyd se aproxima – renasce como um muezim, numa assembleia
conduzida como uma sessão espírita por Bobo Stenson, Palle Danielsson e Jon
Christensen, em melodias castas e inofensivos caravanismos modais. “Notes from
Big Sur”, com a dupla Anders Jormin e Ralph Peterson substituindo a secção rítmica
escandinava, é como a linha costeira que o batiza: convidativo e inacessível,
aprazível e inóspito. “The Call” assinala a entrada de Billy Hart no quarteto –
vigorosamente empático e delicadamente pontilhista – fixando-lhe a formação e
assumindo um tom elegíaco e cristalino. “All My Relations” – até tecnicamente,
dada a sua dinâmica reverberação digital – revela um Lloyd mais assertivo,
inquisitivo, voraz, convictamente profético, a evocar os anos passados com
Chico Hamilton ou Cannonball Adderley. “Canto” é o canto do cisne do conjunto, serenamente
reflexivo, inesperadamente tomado por uma brisa de leste que torna os seus
constituintes essenciais, sugerindo que o melhor estava para vir.
E, de facto, os subsequentes “The
Water is Wide”, “Lift Every Voice” ou “Mirror” confirmaram o restabelecimento total
de Lloyd, na sua declamativa solenidade, rigorosa intelectualidade e ardente
sensualidade – primeiro Brad Mehldau, depois Geri Allen e por fim Jason Moran,
os pianistas que o tornaram a guiar ao cume da montanha. Cabe ao último –
milagroso tecelão – a façanha de coassinar o mais comovente disco de Lloyd
desde “Which Way is East” (2004), esplendorosamente biográfico e, quiçá, o
culminar de uma vida ao serviço da beleza, que será um dia tido como um
clássico e que, por sinal, mais vale começar a tratar como tal, não vá esgotar-se
o tempo para o fazer.
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“Glass: Solo Piano Music” (Brilliant Classics, 2013); “Holt: Solo Piano Music, Volumes I-V” (Brilliant Classics, 2013)
Jeroen
van Veen (p)
Numa entrevista a Marc Myers, publicada no site “JazzWax”, Burt Bacharach discorria nostalgicamente acerca dos tempos de estudante até que recorda um curioso episódio: num exigente Curso de Verão conduzido por Darius Milhaud, submete, com embaraço, uma lírica sonatina, inspirando no professor a surpreendente sugestão de que “jamais deveria recear criar algo tão melódico e memorável”. É um detalhe – dos que falava Mies van der Rohe –, e imagina-se o compositor francês a comentar qualquer coisa do género com outros dois alunos seus, Philip Glass (1937-) e Simeon ten Holt (1923-2012). Aforísticos e epigramáticos, mas com distintas relações com a duração – velocista o primeiro, corredor de fundo o segundo –, evocam ambos o “esplendor geométrico” do futurista Marinetti, valorizando aspetos assimétricos, ainda que o conceito de devir proposto por Heraclito permaneça a mais válida introdução à sua produção. Trata-se em parte de uma labiríntica organização do som – dividida em secções sujeitas a (potencialmente infinita) repetição e sutil transformação – que, condescendendo, se ouve como a improvisação de um pianista que a partir de três minutos de Mozart, Chopin e Bartók tenha de acompanhar durante horas um documentário sobre genética ou citologia. Fúteis de perto e relevantes ao longe, vagamente ritualistas, estas obras possuem uma graça e inteligência muito próprias, com as suas arpejadas intrigas e os seus refluxos narrativos. Holt mantém-se uma revelação.
17 de abril de 2013
“Surinam! Boogie & Disco Funk From the Surinamese Dance Floors 76’-83’” (Kindred Spirits, 2012)
13 de abril de 2013
Rudresh Mahanthappa “Gamak” (ACT, 2013)
Quando Mahanthappa apresenta
“Gamak” – designação inspirada pela palavra em sânscrito gamaka, que, no contexto da música clássica indiana, se emprega
para aludir às possibilidades de ornamentação de determinada melodia – referindo-se
a uma “sensibilidade universal” de que toma posse, enquanto compositor e
improvisador, de maneira a incluir na sua produção “jazz, rock progressivo, heavy
metal, country, folclore, go-go”, simultaneamente recorrendo a “tradições
indianas, chinesas, africanas e indonésias”, fica subentendido um alinhamento
com uma posição – endémica à ecologia artística de Nova Iorque – que, com o
passar dos anos, aparentou tornar-se mais uma contingência do que uma
necessidade. Mas, de facto, encontra-se aqui o mesmo urgente sentido de
exploração – moderado apenas, como em John Zorn ou Steve Coleman, pela imprescindível
obrigação de se propor uma distinta identidade cultural – verificado nas mais
vibrantes manifestações da retórica criativa da cena downtown: uma articulação clara, crua, calculada, clamante, atenta
a tensas formalidades coletivas e a extemporâneas expressões individuais, num
discurso tão poliglota quão vernacular. Nada de muito diferente, embora com uma
linearidade temática e uma especificidade idiomática aí estilhaçadas, do que ensaiou
Miles Davis entre “On the Corner” e “Get Up with It” – e, na sua órbita, logo desenvolveram
Mahavishnu Orchestra e Return to Forever – ou, talvez despontando na memória
por facilitismo geográfico, um prolongamento espiritual da parceria de Joe
Harriott com Amancio D’Silva no final dos anos 60 e das reuniões de Jan
Garbarek com L. Shankar em meados de 80. Mahanthappa está particularmente
gregário, o guitarrista David ‘Fuse’ Fiuczynski confirma-se um polimórfico
virtuoso e François Moutin, no contrabaixo, e Dan Weiss, na bateria, dois
vigorosos polímatas.
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“Gesualdo: Sacrae Cantiones, Liber Secundus” (Harmonia Mundi, 2013)
Vocalconsort Berlin, James Wood
Numa antologia de dez contos
publicada em 1980, Julio Cortázar, numa típica combinação de tópicos e
trópicos, coloca frequentemente a descoberto as mais factícias e fictícias
maquinações. No sétimo, e de forma literal – pois o texto acompanha as
deambulações de uma itinerante trupe coral latino-americana sediada em Buenos Aires e
entregue a repertório europeu do Renascimento e do Barroco –, irrompe uma assembleia
de vozes, organizada, conforme posfácio do autor, de acordo com a “Oferenda
Musical”, de Bach. Trata-se de um vertiginoso transtorno numa coleção
predominantemente monofónica no qual desponta, ainda, uma insidiosa figura –
essa, sim, central à trama que une os destinos das personagens – apresentada
como “príncipe assassino, senhor da música”, Carlo Gesualdo (156?-1613),
que “encontrou a sua mulher na cama com outro homem e os matou”. Hoje, quando
se assinalam os 400 anos do falecimento do compositor, presume-se que de muitos
outros crimes fosse culpado e, embora tenha vivido os seus dias à margem da
lei, especula-se continuamente acerca de algo que parece óbvio: que transformou
num castigo para si mesmo a vingança que havia exercido sobre Donna Maria d'Avalos
e seu amante, Fabrizio Carafa.
É à sombra de tão infame reputação que James Wood, diretor do Vocalconsort Berlin, submete
agora um mimético e deslumbrante exercício de reconstrução estilística,
propondo-se a regenerar um testamental segundo volume de motetos sacros para
seis e sete vozes que, inventariado já sem bassus
e sextus, se imagina estar, pelo
menos, há quatro séculos por cantar. Longe da exuberância dos madrigais, mas
nem por isso menos extravagante em termos cromáticos e praticamente contraintuitivo
em matéria melódica, o que aqui se ouve é uma teia de trevas por onde
ocasionalmente brota um raio de luz, pura expiação.
10 de abril de 2013
6 de abril de 2013
Kris Davis “Capricorn Climber” (Clean Feed, 2013)
Na sua “Oxford History of Western
Music”, Richard Taruskin recorre à metáfora do icebergue para aludir à informação
que, perdida na voragem dos séculos, se vai desprendendo da superfície, afundando-se
pelas profundezas rumo ao esquecimento. Uma prática por si referida é a dos
tratados de instrução técnico-musical, que indicavam aos instrumentistas como adornar
melodias, bordar sequências de acordes, matizar tons, acentuar dinâmicas,
introduzir variações, ou seja, interpretar tudo o que as partituras raramente preservam.
Taruskin não o diz, mas, na literatura, foi Hemingway que postulou uma ‘teoria
do icebergue’ para delinear o processo que permite que os factos concretos
flutuem acima da linha de água enquanto a sua simbólica infraestrutura se
edifica longe da vista. Entre um autor e outro, é de improvisação – como um
princípio que ilude qualquer categorização dogmática – que se fala. E a
pianista Kris Davis, neste sétimo disco da Clean Feed com a sua marca –
contando com o quarteto RIDD, o trio SKM, o grupo Paradoxical Frog e “Novela”,
o álbum de Tony Malaby que orquestrou –, nunca esteve tão próxima de ilustrar estas
ideias. Numa invulgar combinação – acompanhada por Mat Maneri na violeta,
Trevor Dunn ao contrabaixo e pelo casal Ingrid Laubrock, em saxofone tenor, e
Tom Rainey, à bateria – cada uma das suas peças, tão geométrica e
matematicamente concebidas quão etérea e hesitantemente esboçadas, navega entre
o que se compreende e o que apenas se pressente, num espaço de invenção ora
evidente, ora submerso, retalhado por uma sinuosidade linguística e por um
discurso vacilante e solipsista, mas também por um assertivo fluxo de intenções
e um sistemático jorro de valência coloquial. Parte “Viola in My Life”, se Morton
Feldman a tivesse criado para quinteto de jazz, parte, lá está, a comunhão com
o desconhecido.
Adriana Partimpim “Partimpim Tlês” (Minha Música/Sony, 2012)
Numa inócua expressão, da heterónoma aventura de Adriana pelos estágios
pré-adolescentes da existência costuma dizer-se que segue com diligência uma
conceção da infância inextricavelmente associada à alvorada da sociedade de
consumo. Afinal, trata-se de uma invenção moderna, essa que determina de maneira
inalienável um tempo de felicidade, bem-estar e diversão para todos – isto é,
foi preciso esperar pelo século XX para que Peter Pan não se constituísse enquanto
paradoxo. Cem anos depois, a síndrome da criança que se recusa a crescer transformou-se
num estilo de vida sintetizado por Christopher Noxon em “Rejuvenile”, livro descaradamente
inserido pela sua mulher, Jenji Kohan, em episódios da série televisiva de que
é autora, “Weeds”; não por acaso, ‘Little Boxes’, a ladainha que o casal elegeu
para acompanhar genericamente as desventuras de adultos disfuncionais, havia
sido originalmente interpretada por Pete Seeger no período em que o cantor de
intervenção, na peugada de Guthrie, alternava discos de provocante sátira
política para graúdos com compêndios de elementar pedagogia para miúdos, prolongando
uma linhagem que tem hoje descendente em Elizabeth Mitchell, cujo recente “Blue
Clouds” é um novo tratado de sensibilidade e inteligência ao serviço da ideal
primeira juventude. Num procedimento semelhante, nomeadamente na recondução de
temas sérios para o espaço lúdico das pequenas criaturas, ao mesmo almeja Calcanhotto,
embora aparente dirigir-se mais a pais que não querem envelhecer do que
aos seus rebentos. Para tal contribui a arregimentação de estetas de
bricabraque sonoro (Ceppas, Amarante, Kassin, Domenico, Moreno, Pedro Sá)
que evitam a total marretização da
sua chefe. Talvez seja pelo melhor, mas, no contexto brasileiro, ainda não é
desta que Partimpim supera “Saltimbancos”, “Arca de Noé”, “Casa de Brinquedos”
ou “Pirlimpimpim”.
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