Como todo
o artista na vanguarda do seu tempo, Schubert (1797-1828) deixou-se atrair
pelas mais construtivas e destrutivas forças. E, por vezes, escutar as suas
últimas obras é pressentir, no mesmo meditativo solilóquio, um período
histórico a deslizar para o abismo civilizacional ou a caminhar para o êxtase
de que fala a escatologia cristã – trata-se de uma tremenda ilusão que
engendrou seguindo impulsos catárticos, mas que, na realidade, se traduzia na
suspensão da ação entre cada instância. O emparelhamento de duas das suas mais
celebradas e gravadas sonatas para piano – a D 845 em lá menor e a D 960 em si
bemol maior – permite lembrar essa tendência que, num contexto canónico, emerge
do Beethoven programaticamente racional e culmina no Wagner oniricamente apoteótico.
Maria João Pires, que regressa a este repertório de ocasionalmente desesperada
introspeção, privada sutileza e definitiva ambiguidade, ignora o violento
sentimentalismo que domina as manifestações criativas contemporâneas. Aliás, qualquer
nota por si tocada – por instantes numa lógica de frustrante inevitabilidade –
é um concentrado de simplicidade e candura, sintetizando numa prática cristalina,
e possivelmente neutral, aspetos espirituais (já sublinhados por Kempff ou
Richter) e poéticos (conforme os exprimiu Uchida), contornando a radiante
desolação com que Lupu encarava este material ou a turbulenta melancolia que aí
encontrava Pollini. Com uma translúcida noção de textura e absoluto comando das
possibilidades discursivas das peças, a sua interpretação possui apenas a
idiossincrasia e extemporaneidade subjacentes às pautas, com paradigmática
resolução nos scherzo, abordados como
quem no fio do horizonte acha enfim o ponto em que deve fixar o olhar, sem
saber se o que vê pertence ao seu passado ou ao seu futuro.
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