20 de abril de 2013

Charles Lloyd/Jason Moran “Hagar’s Song” (ECM, 2013) & Charles Lloyd “Quartets” (5CD ECM, 2013)

 


Aos 75 anos, Charles Lloyd é um sobrevivente: raro asceta num meio dado ao indulgente culto da vulgaridade, humilde e reverente por entre zelotes e ególatras, modesta figura na congregação de megalómanos em que se transformou a cena mundial do jazz. Tudo isso, em “Hagar’s Song”, se nota pela forma em que subordina o virtuosismo a determinada disposição ou pela maneira em que se acomoda à natureza dos materiais de Strayhorn, Ellington, Gershwin, Dylan ou Brian Wilson, em vez de os moldar à sua imagem, relembrando que essas subtis emanações ficam para a imortalidade. A sua eloquência na suíte titular – que dedica à trisavó, aos dez anos comprada por um esclavagista do Tennessee – dispensa ornamentação e hipérbole e é uma tão violenta quão contemplativa restituição da memória que jamais incorre na paródia ou no proselitismo; isto é, a paixão com que Lloyd toca não implica uma escultórica fisicalidade nem pretende ocupar à força o ouvinte – pelo contrário, cada nota aparenta formular-se tal como havia despontado no seu espírito. E quase sempre assim tem sido há 25 anos, desde que reuniu o quarteto que marcou o seu regresso à música.
Muito se tem escrito acerca da fase – referida como de “reclusão”, “sabática” ou, esotericamente, de “viagem interior” – que, em 90, originou sebastiânica receção a “Fish Out of Water”. Dizem as crónicas – e algumas permanecem enleadas nesse equívoco – que Lloyd esteve 20 anos sem gravar, eclipsando-se após uma meteórica ascensão ao panteão comercial do jazz, quando “Forest Flower”, registado em 66 no Festival de Monterey, vendeu mais de um milhão de cópias e garantiu ao seu quarteto – o de Keith Jarrett, Cecil McBee e Jack DeJohnette – uma aclamação apenas reservada àquelas bandas (Grateful Dead, Jefferson Airplane, Byrds, Santana) com que passou a disputar cartaz no Auditório Fillmore. Numa entrevista de maio de 2004 ao “All About Jazz”, sintetizou nestes termos a decisão de se retirar: “era uma bomba-relógio prestes a detonar, estava acabado, farto do negócio da música, desiludido, tinha perdido o contato com tudo e todos, abusava de várias substâncias e precisava desesperadamente de trabalhar no meu carácter. A única coisa a fazer era afastar-me”.
Na verdade, talvez por necessidade terapêutica, o que isto significa é que, a partir de 70, desmembrado o seu grupo, privilegiou tarefas acessórias em estúdio – com Canned Heat, Doors, Roger McGuinn ou, crucialmente, dada a afinidade com Mike Love, ao lado dos Beach Boys – e desenvolveu projetos que possibilitaram uma mais ativa prossecução dos seus novos interesses (hinduísmo, vegetarianismo, meditação transcendental). Em “Moon Man” ou “Waves” canta como um vagabundo queimado pelo ‘verão do amor’, secundado por John Cipollina, McGuinn, Love, Al Jardine e os irmãos Brian e Carl Wilson; em “Geeta”, de 73, investe num aguado misticismo por temas dos Rolling Stones; com “Weavings”, de 78, ensaia o LP de smooth jazz pelo qual, obviamente, não deseja ser recordado, acercando-se de Grover Washington Jr. ou David Sanborn. Ao longo dessa década é ignorado por imprensa, público e músicos de jazz, até que lhe bate à porta Michel Petrucciani – o par de discos que gravaram entre 82 e 83 representa o primeiro retorno de Lloyd às lides de antanho. “Quartets”, que une os seus cinco álbuns iniciais na ECM, publicados entre 90 e 97, simboliza o segundo.
Em “Fish Out of Water” – e o título só se justifica se pensarmos na coetânea produção de Lovano, Berne, Steve Coleman, Ehrlich, Ware, Perelman ou Eskelin, pois de nenhum outro grande saxofonista do período Lloyd se aproxima – renasce como um muezim, numa assembleia conduzida como uma sessão espírita por Bobo Stenson, Palle Danielsson e Jon Christensen, em melodias castas e inofensivos caravanismos modais. “Notes from Big Sur”, com a dupla Anders Jormin e Ralph Peterson substituindo a secção rítmica escandinava, é como a linha costeira que o batiza: convidativo e inacessível, aprazível e inóspito. “The Call” assinala a entrada de Billy Hart no quarteto – vigorosamente empático e delicadamente pontilhista – fixando-lhe a formação e assumindo um tom elegíaco e cristalino. “All My Relations” – até tecnicamente, dada a sua dinâmica reverberação digital – revela um Lloyd mais assertivo, inquisitivo, voraz, convictamente profético, a evocar os anos passados com Chico Hamilton ou Cannonball Adderley. “Canto” é o canto do cisne do conjunto, serenamente reflexivo, inesperadamente tomado por uma brisa de leste que torna os seus constituintes essenciais, sugerindo que o melhor estava para vir.
E, de facto, os subsequentes “The Water is Wide”, “Lift Every Voice” ou “Mirror” confirmaram o restabelecimento total de Lloyd, na sua declamativa solenidade, rigorosa intelectualidade e ardente sensualidade – primeiro Brad Mehldau, depois Geri Allen e por fim Jason Moran, os pianistas que o tornaram a guiar ao cume da montanha. Cabe ao último – milagroso tecelão – a façanha de coassinar o mais comovente disco de Lloyd desde “Which Way is East” (2004), esplendorosamente biográfico e, quiçá, o culminar de uma vida ao serviço da beleza, que será um dia tido como um clássico e que, por sinal, mais vale começar a tratar como tal, não vá esgotar-se o tempo para o fazer.

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