Aos 75 anos, Charles Lloyd é um
sobrevivente: raro asceta num meio dado ao indulgente culto da vulgaridade, humilde
e reverente por entre zelotes e ególatras, modesta figura na congregação de megalómanos
em que se transformou a cena mundial do jazz. Tudo isso, em “Hagar’s Song”, se
nota pela forma em que subordina o virtuosismo a determinada disposição ou pela
maneira em que se acomoda à natureza dos materiais de Strayhorn, Ellington,
Gershwin, Dylan ou Brian Wilson, em vez de os moldar à sua imagem, relembrando
que essas subtis emanações ficam para a imortalidade. A sua eloquência na suíte
titular – que dedica à trisavó, aos dez anos comprada por um esclavagista do
Tennessee – dispensa ornamentação e hipérbole e é uma tão violenta quão contemplativa
restituição da memória que jamais incorre na paródia ou no proselitismo; isto
é, a paixão com que Lloyd toca não implica uma escultórica fisicalidade nem pretende
ocupar à força o ouvinte – pelo contrário, cada nota aparenta formular-se tal
como havia despontado no seu espírito. E quase sempre assim tem sido há 25
anos, desde que reuniu o quarteto que marcou o seu regresso à música.
Muito se tem escrito acerca da fase
– referida como de “reclusão”, “sabática” ou, esotericamente, de “viagem
interior” – que, em 90, originou sebastiânica receção a “Fish Out of Water”. Dizem
as crónicas – e algumas permanecem enleadas nesse equívoco – que Lloyd esteve
20 anos sem gravar, eclipsando-se após uma meteórica ascensão ao panteão
comercial do jazz, quando “Forest Flower”, registado em 66 no Festival de
Monterey, vendeu mais de um milhão de cópias e garantiu ao seu quarteto – o de Keith
Jarrett, Cecil McBee e Jack DeJohnette – uma aclamação apenas reservada àquelas
bandas (Grateful Dead, Jefferson Airplane, Byrds, Santana) com que passou a disputar
cartaz no Auditório Fillmore. Numa entrevista de maio de 2004 ao “All About
Jazz”, sintetizou nestes termos a decisão de se retirar: “era uma bomba-relógio
prestes a detonar, estava acabado, farto do negócio da música, desiludido, tinha
perdido o contato com tudo e todos, abusava de várias substâncias e precisava
desesperadamente de trabalhar no meu carácter. A única coisa a fazer era afastar-me”.
Na verdade, talvez por necessidade
terapêutica, o que isto significa é que, a partir de 70, desmembrado o seu
grupo, privilegiou tarefas acessórias em estúdio – com Canned Heat, Doors,
Roger McGuinn ou, crucialmente, dada a afinidade com Mike Love, ao lado dos Beach
Boys – e desenvolveu projetos que possibilitaram uma mais ativa prossecução dos
seus novos interesses (hinduísmo, vegetarianismo, meditação transcendental). Em
“Moon Man” ou “Waves” canta como um vagabundo queimado pelo ‘verão do amor’,
secundado por John Cipollina, McGuinn, Love, Al Jardine e os irmãos Brian e Carl
Wilson; em “Geeta”, de 73, investe num aguado misticismo por temas dos Rolling
Stones; com “Weavings”, de 78, ensaia o LP de smooth jazz pelo qual, obviamente, não deseja ser recordado, acercando-se
de Grover Washington Jr. ou David Sanborn. Ao longo dessa década é ignorado por
imprensa, público e músicos de jazz, até que lhe bate à porta Michel
Petrucciani – o par de discos que gravaram entre 82 e 83 representa o primeiro
retorno de Lloyd às lides de antanho. “Quartets”, que une os seus cinco álbuns iniciais
na ECM, publicados entre 90 e 97, simboliza o segundo.
Em “Fish Out of Water” – e o título
só se justifica se pensarmos na coetânea produção de Lovano, Berne, Steve
Coleman, Ehrlich, Ware, Perelman ou Eskelin, pois de nenhum outro grande
saxofonista do período Lloyd se aproxima – renasce como um muezim, numa assembleia
conduzida como uma sessão espírita por Bobo Stenson, Palle Danielsson e Jon
Christensen, em melodias castas e inofensivos caravanismos modais. “Notes from
Big Sur”, com a dupla Anders Jormin e Ralph Peterson substituindo a secção rítmica
escandinava, é como a linha costeira que o batiza: convidativo e inacessível,
aprazível e inóspito. “The Call” assinala a entrada de Billy Hart no quarteto –
vigorosamente empático e delicadamente pontilhista – fixando-lhe a formação e
assumindo um tom elegíaco e cristalino. “All My Relations” – até tecnicamente,
dada a sua dinâmica reverberação digital – revela um Lloyd mais assertivo,
inquisitivo, voraz, convictamente profético, a evocar os anos passados com
Chico Hamilton ou Cannonball Adderley. “Canto” é o canto do cisne do conjunto, serenamente
reflexivo, inesperadamente tomado por uma brisa de leste que torna os seus
constituintes essenciais, sugerindo que o melhor estava para vir.
E, de facto, os subsequentes “The
Water is Wide”, “Lift Every Voice” ou “Mirror” confirmaram o restabelecimento total
de Lloyd, na sua declamativa solenidade, rigorosa intelectualidade e ardente
sensualidade – primeiro Brad Mehldau, depois Geri Allen e por fim Jason Moran,
os pianistas que o tornaram a guiar ao cume da montanha. Cabe ao último –
milagroso tecelão – a façanha de coassinar o mais comovente disco de Lloyd
desde “Which Way is East” (2004), esplendorosamente biográfico e, quiçá, o
culminar de uma vida ao serviço da beleza, que será um dia tido como um
clássico e que, por sinal, mais vale começar a tratar como tal, não vá esgotar-se
o tempo para o fazer.
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