Estamos em fevereiro num hotel da
Avenida de Roma – a comitiva de Kouyaté, aterrada de triunfante digressão pelo
norte da Europa e acabada de contratar para o próximo Festival Músicas do Mundo
de Sines, faz escala em Lisboa no regresso a Bamako – e cumprimentamo-nos com
um sorriso agridoce. O momento é de celebração – o novo álbum confirma-se um
fascinante manifesto de esperança e integridade – mas, ao mesmo tempo, chegam-nos
de Tombuctu e Gao inquietantes notícias. Discutimos o pouco que se vai sabendo
e Bassekou, circunspeto, reflete: “Preocupa-me a perda de soberania do meu país
– e que este não seja tanto um caso isolado quanto um presságio para coisas
piores”. O maliano – que produziu um tratado de sincretismo que iguala aqueloutros
outrora postulados por Rail Band, Toumani Diabaté, Ali Farka Touré ou Oumou
Sangaré – elenca os abusos que, ao abrigo da mais ortodoxa interpretação da lei
islâmica, guerrilheiros tuaregues impuseram a concidadãos seus: “Uma terrível
violência contra mulheres, detenções arbitrárias, flagelações públicas, lapidações,
decapitações, interdições de fumar, beber, ouvir música, enquanto nos campos de
treino em redor das aldeias drogavam jovens de 14 ou 15 anos, metendo-lhes nas
mãos dinheiro, uma kalashnikov e
prometendo-lhes o paraíso”. E continua: “Ora isto não é de bom muçulmano. É
puro banditismo. Falo de gente que entra armada em mesquitas, que torra livros
sagrados, que trafica – foi um ano infernal”. Ainda que sujeita a inúmeros
contratempos, nomeadamente em consequência de atentados suicida, a investida
francesa então em curso, tinha, segundo a retórica em voga, ‘libertado’ as
principais cidades da região da ocupação pelas tropas do Ansar Dine ou do MUJAO.
“E”, prossegue, “tudo isto porque tínhamos um presidente [Amadou Toumani Touré,
deposto em Março de 2012] que não queria bombardear o seu próprio povo, nomeando
até Ag Ahaly [líder do Ansar Dine] para um cargo diplomático. Porque isto não é
um problema étnico!”. Kouyaté estava em estúdio na capital aquando do golpe
militar: “tinha convidados vindos de fora… jornalistas, produtores, engenheiros
de som, e eu aterrorizado com cortes de eletricidade, recolher obrigatório, balas
perdidas, soldados amotinados”. Pressente-se nas suas palavras um profundo
despeito, mas por entre o caos encontrou motivação: “quis, com este disco
reunir a minha mulher [a cantora Amy Sacko], os meus filhos e amigos [de Taj
Mahal à tuaregue Khaira Arby], e falar daquilo que anda há séculos a ser representado
na nossa arte: porque a solução sabemo-la nós, músicos, que somos como um país
à parte”. Comovente e panegírico símbolo para a paz, “Jama Ko” é uma porta de
acesso a uma biblioteca organizada em torno do tema da tolerância. “Ouçam”,
conclui, “porque quando nos calarmos é sinal de que o mundo – ao contrário das
feridas nos nossos corpos – já não está capaz de se curar”.
Sem comentários:
Enviar um comentário