2 de março de 2019

Bassekou Kouyaté & Ngoni Ba “Miri” (Out Here, 2019)

Trocávamos impressões após a sua atuação no festival Gnaoua, de Essaouira, em meados de junho de 2014, tinha o Ngoni Ba dividido palco com o mâalem de Hamid El Kasri. Estava radiante, Bassekou, e, de tanto se rir, o intervalo que exibe na dentadura entre os incisivos centrais superiores parecia que ia ficando maior, como uma falha geológica. De espetada de frango e gasosa na mão, pergunto-lhe se não estou a incorrer numa imperdoável quebra de protocolo. “Não, não… Esteja à vontade. Além de que o ramadão é só lá mais para o fim do mês”, responde, num francês algo desnasalizado, aparentado prosodicamente daqueloutro que se fala na região do Midi. “Mas não se aproxime muito do El Kasri, que ainda lhe suja a jelaba!” Todo de branco, o marroquino desdobrava-se em salamaleques e destacava-se na multidão como quem recebe um prémio numa cerimónia e se prepara para ir dar um discurso de aceitação. “Sinto-me muito bem entre os árabes”, desabafa subitamente Bassekou. “Sabe, se isto fosse noutra altura, nós até podíamos ir numa caravana até casa. Mas, agora, no Mali, na outra ponta desta estrada, estão os fundamentalistas!” 

Aproveito para comentar que a mais antiga descrição do alaúde que Bassekou toca foi feita em 1325 por al-Umari e que a primeira documentação da sua casta profissional – a dos jali, ou jeli – surgiu no relato das viagens do magrebino Ibn Battuta, que visitou o Império do Mali em 1352 e que garantiu que o caminho até lá era seguríssimo. “E é assim que deveria ser”, exclama Bassekou. “Estamos há séculos a trabalhar pela paz. Basta que nos ouçam!” Balbucio qualquer coisa acerca das plateias ocidentais não perceberem patavina daquilo que os griôs cantam mas ele estava embalado e tinha resposta absolutamente para tudo: “Qual é o problema? Não podem ouvir com os corações?” Veio-me à lembrança a conversa ao escutar ‘Kanougnon’, o dueto com o marroquino Majid Bekkas que abre “Miri”. De facto, o álbum espeta uma lança no coração daqueles cínicos a quem o bem alheio só traz desgostos e dissabores. Talvez por isso tenha ido gravá-lo a casa, rodeado pela família, por amigos e por gente que já nem está entre nós, ali, num dos vilarejos de Ségou onde nasceram os blues.

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