30 de março de 2019

Larry Ochs, Nels Cline, Gerald Cleaver “What Is To Be Done” (Clean Feed, 2019)

Cem anos antes da Clean Feed ter sido criada, era Lenine que coçava a cabeça: “A questão ‘Que fazer?’ tem-se posto com particular acuidade”, concluía o bolchevique nas páginas do jornal “Iskra”. Como é óbvio, não falava de jazz. Mas, a certa altura, os detratores da chancela portuguesa suspeitavam que os seus fundadores se referissem ao jazz tradicional exatamente como Lenine se havia referido ao czarismo: “Temos estado a falar de uma preparação sistemática, metódica, mas não quisemos de modo algum dizer com isso que a autocracia não possa cair senão na sequência de um assalto organizado. É muito mais provável que ela caia sob o choque de uma explosão espontânea.” Bom, no que diz respeito ao jazz enquanto peça de museu, isto foi mais uma implosão do que outra coisa qualquer. Com ironia, é o que traz à memória a Clean Feed neste vitriólico “What is to be Done’, a sua quingentésima edição que, por sinal, num encarnadinho profundamente soviético, lembra também o que um dia escreveu Bill Shoemaker a propósito da rutura na arte: “A mudança é muitas vezes um disfarce artificioso para continuidades mais profundas.” 

A citação tem um ponto: é que, aqui, mesmo sem o pretender, o trio de Ochs, Cline e Cleaver evoca uma época em que o jazz mais predatório, o funk mais esquálido e o rock mais bacilar foram improváveis companheiros de borga, em que se diria que o genoma do jazz ficou de tal forma comprometido que só a ciência forense o podia identificar. Mas, nesse particular, Chuck Berry é que tinha razão. Em 1980, quando a fanzine “Jet Lag” o pôs a ouvir Sex Pistols, Clash, Ramones e Talking Heads, disse assim: “Não é nada que não tenha ouvido antes. Isto parece precisamente o tipo de jam que o BB ou o Muddy pudessem fazer nos bastidores do antigo Anfiteatro Internacional, em Chicago.” Nem de propósito, chamou-se no wave à lamela em que se guardou o material genético deste “What is to be Done”. Uma caracterização inspirada em Claude Chabrol, que, quando lhe perguntaram a razão de os seus filmes divergirem tanto dos da Nouvelle Vague, e embora Krishna o tivesse afirmado antes, respondeu: “Não há vagas, só o oceano”. Salpicado pelo Ornette de “Of Human Feelings”, pelos Lounge Lizards, pelos Contortions e por aqueles discos de inícios de 80 de gente como James “Blood” Ulmer, Material ou Elliott Sharp, agora, é este trio que o vem recordar. Que fazer? Dar aos braços, claro.

Sem comentários:

Enviar um comentário