9 de março de 2019

Lindquist: Mantra (BIS, 2018)

Antes de chegarmos a “Mantra” propriamente dita já o alinhamento deste CD se põe a entoar Om e a unir o polegar com o indicador – é em “Drawing”, de Toshio Hosokawa, uma peça praticamente ovarista que pretende ser o equivalente musical de uma amniocentese. Conforme explica o compositor, em notas de apresentação: “Sonhei que regressava ao ventre da minha mãe. E vivi uma série de sentimentos primordiais: angústia, pressão, medo, desejo e, por fim, a alegria de vir ao mundo” – imaginam-se hordas de psicanalistas a roer as unhas com vontade de o ouvir. Não obstante a repugnância da coisa, claro que há uma certa segurança em ser-se parteiro do próprio nascimento. Mas Hosokawa não está disposto a correr riscos: esta sua delicadíssima e velada obra (membranácea talvez fosse um termo mais apropriado) foi escrita para oito instrumentistas, o número da prosperidade e da abundância, no Japão. 

Como é óbvio, qualidades que muito faltaram à época que inspirou “Minnelieder – Zweites Minnewater”, a obra de Bent Sorensen que de seguida se escuta e que foi sugerida pelas desventuras do século XIV – aliás, percebe-se pelos primeiros compassos que teve como primeira encarnação “Les Tuchins”, de meados de 80, substantivo, por sinal, que o dinamarquês encontrou em “A Distant Mirror”, o livro de Barbara Tuchman. Enfim, lá nos obriga a ir à prateleira: “O monge de Saint-Denis [Michel Pintoin] chamava-os désespérés e crève-de-faim, mas na região eram mais conhecidos por tuchins. Há quem diga que o nome deriva de tuechien, uma expressão destinada a caracterizar gente tão miserável que comia cães para subsistir. Andavam pelo campo em bandos de 20, 60, ou 100, a roubar e a pilhar.” De facto, a peça de Sorensen é feita de emboscadas rítmicas, de ciladas tímbricas, ataques à má-fé à tonalidade e muito humor negro – a espaços, sugere até o que poderia ter sido o apocalipse zombiemusicado por Carl Stalling. Então, nesta sequência, “Mantra”, de Ellen Lindquist [na foto], não podia soar mais balsâmica: para gamelão, e outros treze instrumentos em inusitada afinação, a obra é um prodígio de invenção e sensibilidade, sem bijuterias e quinquilharias. Possui uma ingenuidade algo interdenominacional e uma espontaneidade que Steiner definiria como extraterritorial – de padrões concêntricos e etéreos, ainda que profundamente telúrica, na geologia seria como os anéis de Liesegang! No CD, sabe ao sal da vida.

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