Como quem diz que, estando dentro de si, isto se
trata de uma música cuja semente se plantou na noite dos tempos, “Inside
Rhythmic Falls” arranca com uma oblação – Ortiz, Marlène Ramírez-Cancio e Emeline
Michel dando voz a uma versão pessoal da hóstia e do vinho enquanto, em seu
redor, Andrew Cyrille e Mauricio Herrera, em bateria e percussão, desenham
círculos concêntricos como quem elenca os ciclos da vida e convoca os mistérios
da criação. Trata-se de uma “oferenda aos meus antepassados”, conta Aruán, em
notas de apresentação, “usando ritmicamente as palavras para dar a ideia de um
turbilhão” – ou de como um tema musical pode ter origem numa prática
extramusical. A sua frase traz à memória a ambição do narrador de “Os Passos
Perdidos”, de Alejo Carpentier, à cata pela América do Sul de “uma expressão
musical que surgisse da palavra nua, da palavra anterior à música, e que
passasse do falado ao cantado de modo quase insensível, […] o poema encontrando
a sua própria música na escansão e na prosódia.” Não será por acaso que, em
2004, logo no seu primeiro disco, Ortiz compôs um tema a que chamou ‘Pasos
Perdidos’. Quando o seu editor, Antonio Valero, me o deu, em inícios de 2005,
falou-me de um prodigioso talento, de alguém relativamente jovem (Ortiz
rondava, então, os 30 anos), mas que se diria depositário de tradições imemoriais,
de um músico americano de jazz cujo sangue o ligava aos mais remotos mananciais do
género: a África, via Santiago de Cuba. Nunca, como agora, foi esse vínculo tão
claro: Ortiz silenciando as vozes do presente (em Brooklyn, onde reside) para
encontrar a tonalidade do grilo, o diapasão do beija-flor, o andamento das rãs
e a clave da palmeira onde nasceu. Isto é, a astúcia da gente bantu, de que ele
descende, quando teve de se tornar senhora de um novo mundo que estava
rigorosamente interdita de moldar à imagem, costumes e memória dessoutro a
que tinha sido à força arrancada. Daí, ao piano, resulta o mais extraordinário
disco afro-cubano de jazz desde “Lucumi” (1988), de Chucho Valdés, uma
ondulante torrente rítmica capaz de persuadir quem a escuta que acaba de
assistir ao nascimento da própria música.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
30 de maio de 2020
Edikanfo “The Pace Setters” (Glitterbeat, re. 2020)
Há coisa de dez anos, tinha ele acabado de escrever notas de
apresentação para “Ghana Funk from the 70s”, na Hippo, entrei em contacto com
John Collins, instrumentista, investigador e docente na Universidade do Gana. Trocando
impressões sobre a avalanche de antologias focadas em música ganesa que na
altura atingia o mercado, dizia-lhe que achava extraordinário nenhuma delas
incluir os Edikanfo, dos poucos a terem sido editados na Europa. “É verdade”, respondia-me. “Mas, se reparar, sob esse prisma, a omissão
dos Osibisa será ainda mais escandalosa. Não só, no Gana, se passou a desconfiar
das bandas que se atreveram a combinar ritmos ganeses com rock e soul, como,
também, na Europa, se passou a questionar a honestidade das bandas africanas
que procuraram nos anos 70 e 80 sucesso fora de portas. Sem que o tivessem
chegado a gozar, os Edikanfo, no processo, são um dano colateral.” Realmente. Atente-se
ao paradoxo nestas palavras do empresário Faisal Helwani, antigo ideólogo da
banda, em entrevista à americana “In These Times”, em 2001: “Hoje, no Gana, para
se estar na crista da onda, tem de se ouvir música importada enquanto se segura
um hambúrguer com a mão direita e uma lata de Coca-Cola com a esquerda!” Pois, em
1981, como esse futuro convertido ao purismo fez questão de garantir, bastava
ter-se Brian Eno na cabine – este, por sua vez, via materializar-se a intuição
que o tinha guiado a “My Life in the Bush of Ghosts” (com Byrne): que “na
interação entre o primitivo e o futurista, as ideias mais interessantes eram as
mais antigas”, disse, à “Sounds”. Por sorte, esperava-o em Acra gente que se
sabia na primeira linha – em acã, edikanfo
quer dizer líder – e “The Pace Setters” resulta de uma notável e elementar tomada
de consciência: com Talking Heads à cabeça, de corresponder ao passo em frente
que compensasse os dois que dava atrás quem na época pretendia renovar energias
em solo africano. Conseguiu-o, em teoria, mas o golpe militar que no final do
ano fechou o país impediu-o de o demonstrar na prática – 40 anos depois, é a
covid-19 que mantém os reformados Edikanfo presos em casa de passaporte no
bolso. A ironia.
23 de maio de 2020
Last Dream of the Morning “Crucial Anatomy” (Trost, 2020) & Steve Beresford & John Butcher “Old Paradise Airs” (Iluso, 2020)
Last Dream of the Morning – é como se chama o
extraordinário trio de John Butcher, John Edwards e Mark Sanders. Se o
levássemos à letra, aqui, seria como se os sons do sudeste asiático nos
sufocassem os sentidos ao acordar e nos sentássemos na cama subitamente cintados
pelo suor, cercados de incenso, siderados pelo lasso ziziar das cigarras longe
das cidades – saxofone, contrabaixo e bateria as únicas formas reconhecíveis
entre as sombras e as fumaças. Trata-se, em rigor, de pôr em cena a atávica etiqueta
do ritual que há na música, com os seus gestos sagrados e aquela mediúnica
capacidade de, ao vivo, em concerto, atribuir expressão concreta à imanência pura
do momento presente. Como poucos, mas como todos os outros, os discos de John
Butcher fazem questão de nos lembrar que são apenas instantâneos abruptamente
subtraídos à realidade, uma receita para o medo que a nossa impermanência nos
mete.
Durante o confinamento, como se
estivesse a exercer uma espécie de prerrogativa qualquer, dei por mim a
revisitar “The Geometry of Sentiment” (2007) e “Resonant Spaces” (2008),
registos dele a solo, alguns dos quais em locais insólitos, lembretes de que a
intimidade é frequentemente governada por circunstâncias que fogem ao nosso
controlo – e quando me fez “Crucial Anatomy” e “Old Paradise Airs” chegar às
mãos, foi como se me tivesse lido a mente. Como de costume, dá-se por Butcher a
escalpelar os subsistemas da linguagem em ambos, a esforçar-se não só para ter
o que dizer mas, sobretudo, em ter como o dizer, enquanto, primeiro, se
encontra num templo zen, a aprender a
separar querer e crer, e, depois, com Beresford, e a língua feita em lava, se vê
mergulhado numa câmara magmática. Nos dois, o mistério de estar num e noutro
sítio sem se perder em lugar nenhum.
Attarazat Addahabia & Faradjallah “Al Hadaoui” (Habibi Funk, 2019)
Há coisa de um mês, nem tanto, no intuito de angariar fundos
para apoiar associações e confrarias da cidade, a braços com uma quebra de
rendimentos sem precedentes, foi colocado à venda o tema “A Day in Essaouira”, colaboração
entre os Parallells (o duo de música eletrónica dos irmãos Thomas e Julien de
Bie) e o maâlem de Omar Hayat. Recordo-me
da emblemática presença do marroquino, há cinco anos, numa conferência de
imprensa do Festival Gnaoua: a diretora artística, Neila Tazi, de um lado, a
falar da necessidade de “regressar às raízes” face à crescente comercialização
da música gnaoua; ele, do outro, dizendo
que sim, com uma t-shirt de Jimi
Hendrix colada ao corpo. Provavelmente não se lembravam da ação de Abdelakabir
Faradjallah, ali, entre finais de 60 e inícios de 70, quando, com meia dúzia de
irmãos e irmãs, primos e primas, e inspirado pelos gnaoua, fundou os Attarazat Addahabia e trocou o guembri pela guitarra elétrica, os qraqeb pelas baquetas, o chèche por um sombrero, o amazigue pelo árabe. Bom, de “Al Hadaoui” não se podiam
com certeza lembrar, pois, gravado que foi, em 1972, inédito se manteve até ao
momento em que a Habibi Funk o lançou, no verão passado (e que, numa versão
revista, repõe agora no mercado). Seria, na época, uma reação àquilo que
Faradjallah considerava a apropriação dos códigos da contracultura ocidental
por jovens conterrâneos seus que ignoravam quem se opunha já às tendências
artísticas dominantes entre si – um óbvio paradoxo que a edição de “Brian Jones
Plays with the Pipes of Pan at Joujouka” (1971) expunha ao ridículo. Aqui, seria
a partir de um conteúdo nacional divorciado das atividades ideológicas do
regime – a prática gnaoua,
precisamente – que se chegaria à forma adotada pelos radicais de Londres e
Paris que achavam chic visitar
Marrocos. Será, porventura, o que explica a edulcoração nesta variante berbere de
ié-ié que, no fundo, mais não desejava que compensar os seus agentes por,
naquele momento histórico, não puderem ser as pessoas que mais gostariam de
ser. Talvez por isso – por parecer ter mais que ver com sentimentos do que com
acontecimentos – se mantenha tão atual.
Subscrever:
Mensagens (Atom)