30 de maio de 2020

Aruán Ortiz “Inside Rhythmic Falls” (Intakt, 2020)


Como quem diz que, estando dentro de si, isto se trata de uma música cuja semente se plantou na noite dos tempos, “Inside Rhythmic Falls” arranca com uma oblação – Ortiz, Marlène Ramírez-Cancio e Emeline Michel dando voz a uma versão pessoal da hóstia e do vinho enquanto, em seu redor, Andrew Cyrille e Mauricio Herrera, em bateria e percussão, desenham círculos concêntricos como quem elenca os ciclos da vida e convoca os mistérios da criação. Trata-se de uma “oferenda aos meus antepassados”, conta Aruán, em notas de apresentação, “usando ritmicamente as palavras para dar a ideia de um turbilhão” – ou de como um tema musical pode ter origem numa prática extramusical. A sua frase traz à memória a ambição do narrador de “Os Passos Perdidos”, de Alejo Carpentier, à cata pela América do Sul de “uma expressão musical que surgisse da palavra nua, da palavra anterior à música, e que passasse do falado ao cantado de modo quase insensível, […] o poema encontrando a sua própria música na escansão e na prosódia.” Não será por acaso que, em 2004, logo no seu primeiro disco, Ortiz compôs um tema a que chamou ‘Pasos Perdidos’. Quando o seu editor, Antonio Valero, me o deu, em inícios de 2005, falou-me de um prodigioso talento, de alguém relativamente jovem (Ortiz rondava, então, os 30 anos), mas que se diria depositário de tradições imemoriais, de um músico americano de jazz cujo sangue o ligava aos mais remotos mananciais do género: a África, via Santiago de Cuba. Nunca, como agora, foi esse vínculo tão claro: Ortiz silenciando as vozes do presente (em Brooklyn, onde reside) para encontrar a tonalidade do grilo, o diapasão do beija-flor, o andamento das rãs e a clave da palmeira onde nasceu. Isto é, a astúcia da gente bantu, de que ele descende, quando teve de se tornar senhora de um novo mundo que estava rigorosamente interdita de moldar à imagem, costumes e memória dessoutro a que tinha sido à força arrancada. Daí, ao piano, resulta o mais extraordinário disco afro-cubano de jazz desde “Lucumi” (1988), de Chucho Valdés, uma ondulante torrente rítmica capaz de persuadir quem a escuta que acaba de assistir ao nascimento da própria música.

Edikanfo “The Pace Setters” (Glitterbeat, re. 2020)


Há coisa de dez anos, tinha ele acabado de escrever notas de apresentação para “Ghana Funk from the 70s”, na Hippo, entrei em contacto com John Collins, instrumentista, investigador e docente na Universidade do Gana. Trocando impressões sobre a avalanche de antologias focadas em música ganesa que na altura atingia o mercado, dizia-lhe que achava extraordinário nenhuma delas incluir os Edikanfo, dos poucos a terem sido editados na Europa. “É verdade”, respondia-me. “Mas, se reparar, sob esse prisma, a omissão dos Osibisa será ainda mais escandalosa. Não só, no Gana, se passou a desconfiar das bandas que se atreveram a combinar ritmos ganeses com rock e soul, como, também, na Europa, se passou a questionar a honestidade das bandas africanas que procuraram nos anos 70 e 80 sucesso fora de portas. Sem que o tivessem chegado a gozar, os Edikanfo, no processo, são um dano colateral.” Realmente. Atente-se ao paradoxo nestas palavras do empresário Faisal Helwani, antigo ideólogo da banda, em entrevista à americana “In These Times”, em 2001: “Hoje, no Gana, para se estar na crista da onda, tem de se ouvir música importada enquanto se segura um hambúrguer com a mão direita e uma lata de Coca-Cola com a esquerda!” Pois, em 1981, como esse futuro convertido ao purismo fez questão de garantir, bastava ter-se Brian Eno na cabine – este, por sua vez, via materializar-se a intuição que o tinha guiado a “My Life in the Bush of Ghosts” (com Byrne): que “na interação entre o primitivo e o futurista, as ideias mais interessantes eram as mais antigas”, disse, à “Sounds”. Por sorte, esperava-o em Acra gente que se sabia na primeira linha – em acã, edikanfo quer dizer líder – e “The Pace Setters” resulta de uma notável e elementar tomada de consciência: com Talking Heads à cabeça, de corresponder ao passo em frente que compensasse os dois que dava atrás quem na época pretendia renovar energias em solo africano. Conseguiu-o, em teoria, mas o golpe militar que no final do ano fechou o país impediu-o de o demonstrar na prática – 40 anos depois, é a covid-19 que mantém os reformados Edikanfo presos em casa de passaporte no bolso. A ironia.

23 de maio de 2020

Last Dream of the Morning “Crucial Anatomy” (Trost, 2020) & Steve Beresford & John Butcher “Old Paradise Airs” (Iluso, 2020)

Last Dream of the Morning – é como se chama o extraordinário trio de John Butcher, John Edwards e Mark Sanders. Se o levássemos à letra, aqui, seria como se os sons do sudeste asiático nos sufocassem os sentidos ao acordar e nos sentássemos na cama subitamente cintados pelo suor, cercados de incenso, siderados pelo lasso ziziar das cigarras longe das cidades – saxofone, contrabaixo e bateria as únicas formas reconhecíveis entre as sombras e as fumaças. Trata-se, em rigor, de pôr em cena a atávica etiqueta do ritual que há na música, com os seus gestos sagrados e aquela mediúnica capacidade de, ao vivo, em concerto, atribuir expressão concreta à imanência pura do momento presente. Como poucos, mas como todos os outros, os discos de John Butcher fazem questão de nos lembrar que são apenas instantâneos abruptamente subtraídos à realidade, uma receita para o medo que a nossa impermanência nos mete. 



Durante o confinamento, como se estivesse a exercer uma espécie de prerrogativa qualquer, dei por mim a revisitar “The Geometry of Sentiment” (2007) e “Resonant Spaces” (2008), registos dele a solo, alguns dos quais em locais insólitos, lembretes de que a intimidade é frequentemente governada por circunstâncias que fogem ao nosso controlo – e quando me fez “Crucial Anatomy” e “Old Paradise Airs” chegar às mãos, foi como se me tivesse lido a mente. Como de costume, dá-se por Butcher a escalpelar os subsistemas da linguagem em ambos, a esforçar-se não só para ter o que dizer mas, sobretudo, em ter como o dizer, enquanto, primeiro, se encontra num templo zen, a aprender a separar querer e crer, e, depois, com Beresford, e a língua feita em lava, se vê mergulhado numa câmara magmática. Nos dois, o mistério de estar num e noutro sítio sem se perder em lugar nenhum.

Attarazat Addahabia & Faradjallah “Al Hadaoui” (Habibi Funk, 2019)


Há coisa de um mês, nem tanto, no intuito de angariar fundos para apoiar associações e confrarias da cidade, a braços com uma quebra de rendimentos sem precedentes, foi colocado à venda o tema “A Day in Essaouira”, colaboração entre os Parallells (o duo de música eletrónica dos irmãos Thomas e Julien de Bie) e o maâlem de Omar Hayat. Recordo-me da emblemática presença do marroquino, há cinco anos, numa conferência de imprensa do Festival Gnaoua: a diretora artística, Neila Tazi, de um lado, a falar da necessidade de “regressar às raízes” face à crescente comercialização da música gnaoua; ele, do outro, dizendo que sim, com uma t-shirt de Jimi Hendrix colada ao corpo. Provavelmente não se lembravam da ação de Abdelakabir Faradjallah, ali, entre finais de 60 e inícios de 70, quando, com meia dúzia de irmãos e irmãs, primos e primas, e inspirado pelos gnaoua, fundou os Attarazat Addahabia e trocou o guembri pela guitarra elétrica, os qraqeb pelas baquetas, o chèche por um sombrero, o amazigue pelo árabe. Bom, de “Al Hadaoui” não se podiam com certeza lembrar, pois, gravado que foi, em 1972, inédito se manteve até ao momento em que a Habibi Funk o lançou, no verão passado (e que, numa versão revista, repõe agora no mercado). Seria, na época, uma reação àquilo que Faradjallah considerava a apropriação dos códigos da contracultura ocidental por jovens conterrâneos seus que ignoravam quem se opunha já às tendências artísticas dominantes entre si – um óbvio paradoxo que a edição de “Brian Jones Plays with the Pipes of Pan at Joujouka” (1971) expunha ao ridículo. Aqui, seria a partir de um conteúdo nacional divorciado das atividades ideológicas do regime – a prática gnaoua, precisamente – que se chegaria à forma adotada pelos radicais de Londres e Paris que achavam chic visitar Marrocos. Será, porventura, o que explica a edulcoração nesta variante berbere de ié-ié que, no fundo, mais não desejava que compensar os seus agentes por, naquele momento histórico, não puderem ser as pessoas que mais gostariam de ser. Talvez por isso – por parecer ter mais que ver com sentimentos do que com acontecimentos – se mantenha tão atual.