16 de maio de 2020

Fra Fra “Funeral Songs” (Glitterbeat, 2020)


No Gana setentrional, a cerca de 400 quilómetros da costa, Ian Brennan interrogava-se acerca dos limites de resistência à tração de uma cultura: “Até que ponto [este material] pode ser esticado antes de se quebrar?”, anotava ele, no seu bloco de apontamentos, tentando controlar o derrame de um microfone ao outro, enquanto ali mesmo, bem à sua frente, quatro homens lhe diziam a que soa o equivalente anímico a uma fratura exposta na superfície terrestre. Depois, escreve: “Esta região está na origem do Blues – é de onde eles vieram e, no fundo, de onde nunca saíram.” Nesse instante, como é óbvio, não estava com a intuição delirantemente à solta: antes dele, tomados pelo mesmíssimo pressentimento, cronistas como Paul Oliver e Samuel Charters – isto é, gente que andou à cata do ponto exato onde o blues começou, quais David Livingstone ou Richard Burton em busca da nascente do Nilo – haviam incluído canto responsorial fra fra em “Story of the Blues” (1969) e “African Journey: A Search for the Roots of the Blues” (1975). Mas, apesar de ter de lidar com arquétipos semelhantes, Ian não anda propriamente a verter resina sobre ninguém. Aliás, ao contrário da prática etnomusicológica, como explica em “How Music Dies” (2016), não tenta isolar um determinado momento, nem fixar o que é por natureza fluído: pela negativa, Brennan rejeita a ideia de que “produz discos de ‘world music’”, refuta o “conceito de autenticidade” e recusa-se a ser “visto como um conservacionista”. Ele é só “alguém que grava discos de punks que, por acaso, vêm de zonas muito remotas do planeta, onde, por sinal, nunca se ouviu um disco de punk – nem outro disco qualquer, se formos a ver”, como me pôs por email, há uns anos. É o caso deste quarteto movido a milho-miúdo, que canta as coisas da vida (e da morte) com a mesma desarmante crueza com que gerações de bluesmen se puseram a entoar melodias que começavam pela frase: “Eu hoje acordei”. Pelo menos até ao dia em que não se acorda de vez. “Tens, aí, o disco para ouvir”, escrevia-me Brennan, de Itália, em meados de março. “Neste período de confinamento, até a mim me parece mais pungente”, admitia. Então, não?

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