1 de maio de 2020

Ravel: Jeux de Miroirs (Harmonia Mundi, 2020)

Em janeiro de 2019, em entrevista à “Platea”, e precisamente a propósito de Ravel, Javier Perianes foi confrontado com a questão da apropriação cultural (pelo ar, ainda, o eco das palminhas aciganadas de ‘Malamente’, de Rosalía): “Não me atreveria a afirmá-lo de modo categórico”, respondeu o pianista, ciente de que se discutiam práticas que, em rigor, não pertencem exclusivamente a ninguém. “Temos de reconhecer que Ravel permite uma visão de Espanha extremamente refinada em algumas das suas peças. Diria que a perspetiva francesa de inícios do século XX era de um folclorismo requintado. Ou seja, que, a partir de postulados muito seus, assimilava elementos da nossa música que imediatamente estilizava com cores e recursos próprios. Aliás, em França, senti sempre que o público reagia de forma muito positiva à música espanhola, como se de alguma maneira nela fosse encontrando algo de si mesmo”, explicava. Estava já a falar de espelhos – ou, pelo menos, da transferência para o plano figurado daquela empática relação com espelhos que, segundo Lacan, desenvolvemos, ali, entre os 6 e os 18 meses, e que leva a que nos situemos no mundo. Agora, neste curiosíssimo CD, que se diria saído do campo da psicologia cognitiva, é Ravel que Perianes põe ao espelho: “De um lado, o compositor que escrevia originalmente para piano; do outro, o genial orquestrador”, anuncia. Isto é, com Pons, propõe que escutemos, de seguida, “Alborada del gracioso” e “Le Tombeau de Couperin” nos seus enunciados iniciais e nas suas formulações revistas, tornava Ravel às suas partituras como Monet aos seus nenúfares. Pressuposto que me traz à memória o dia em que visitei a casa-museu de Ravel, em Montfort-l’Amaury, e me senti a profanar o templo de um solipsista, quando tudo o que conhecia da obra dele apontava em sentido inverso: também aqui, numa articulação clara e arejada, sobretudo quando faz pivô num “Concerto para Piano em Sol maior” em que alivia o asfíxico efeito estufa que há anos anuvia a obra, revela Perianes esse delicado Ravel tão dado aos seus semelhantes, nem que fosse apenas para melhor lhes captar o reflexo.

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