Em 1971, tinha ido o homem a enterrar, era no
mercado colocada uma antologia designada “Stravinsky Joue Stravinsky”, em parte
consagrada à obra para violino e piano que o compositor havia gravado com
Samuel Dushkin. Nada de especial a distinguia, que não a súbita confirmação de
quão pouquíssimo idiomática efetivamente era, pois, alérgico à implícita
expressividade do instrumento, Stravinsky tinha resistido com hostilidade à
escrita para violino. Contudo, a partir de 1932, motivado pelo seu editor
alemão, e sempre com Dushkin a seu lado, imaginava-se já a disputar o quinhão
reservado aos grandes virtuosos, através de recitais cujo programa o presente disco
evoca e que se diria ter como expoentes “Duo Concertante”, “Divertimento (O
Beijo da Fada)” e “Suíte Italiana (Pulcinella)”. Conforme esperado, para a
época, o estilo, esse, era o daquelas escusadas autópsias ao barroco tão ao
gosto dos salões da chiquérrima Winnaretta Singer, onde jamais se discutia o
facto de um quarto da população estar desempregada. Ainda assim, em retrospetiva,
dá-se nestas curtas peças por uma inegável e crucial tensão que as torna dignas
de nota: mesmo a mais escrupulosa obediência ao cânone pode revelar-se um fator
de disrupção do presente, parecem dizer. Aliás, basta justapor esta espécie de indomesticável
desconforto a que o violinista devoradoramente se entrega e a delicadeza e a
distinção em tudo o que o pianista coreograficamente toca para se tirar um
retrato à Grande Depressão. As arestas do seu tempo a golpear a superfície lisa
da história, só uma vez, que me lembre, tiveram um violinista a trocar o arco
pela plaina (Itzhak Perlman, em 1976) – desde então, é preferível honrar as hesitações
e as irritações na partitura, que é, excetuando “Pas de deux” ou “Dithyrambe”, o
que aqui produz a entoação algo farpada de Monteiro. Nas “Bucólicas”, de
Virgílio, a que o “Duo Concertante” alude, lê-se isto: “Sei de poemas, e poeta/
Me chamam os pastores; não o creio/ Até agora nada do que faço/ É digno de
Varius nem de Cinna/ Entre canoros cisnes pato sou.” Por mais que nos tentem
convencer do contrário, é uma bela descrição do violino na obra de Stravinsky.
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