31 de outubro de 2020

Hélène Grimaud “The Messenger” (Deutsche Grammophon, 2020)

Na sua versão para orquestra de cordas e sintetizador, em “O Mensageiro”, de Valentin Silvestrov, cabe a Viena de José II, o ‘Rei Musical’: distorcida por finíssimas dissonâncias, soa a uma cassete de Mozart com a fita empenada. Será a chave para desvendar este inusitado programa, com “O Mensageiro”, também na sua versão para piano solo, e “Dois Diálogos com Pós-Escrito”, do compositor ucraniano, caprichosamente justapostas à “Fantasia em Ré menor”, K. 397, ao “Concerto para Piano Nº 20”, em Ré menor, K. 466, e à “Fantasia em Dó menor”, K. 475, de Mozart. Curiosamente, em notas de apresentação, Grimaud admite que, em jovem, com a sensibilidade à flor da pele, não tinha paciência nem para um, nem para outro – se é que fazia ideia quem Valentin Silvestrov era, o que não é certo. Seja como for, agora, diz-se “atraída por novos desafios, mais intimamente ligados ao seu desenvolvimento pessoal”. O que entra em rota de colisão com o momento atual, claro, em que “nos assaltam os nossos piores receios”: daí, então, “ser necessária uma música mais intensa”, que “faça frente ao medo, à doença e à angústia que nos cerca”, crê. Talvez por isso acumule a Camerata Salzburg tanta energia nervosa – é tal o desassossego, aliás, que, no concerto, quando entra o piano, não surpreende que o instrumento solista vá deitando aos poucos a língua de fora à orquestra. Infelizmente, Grimaud, que, no alinhamento, havia já tocado a “Fantasia em Ré menor” como se fosse a “Cnossiana Nº 4”, de Erik Satie, não resiste a cortejar a sua própria excentricidade e, aqui, toca Mozart como se fosse Beethoven. Bom, em certa medida, é: a pianista socorre-se das cadenzas que o alemão compôs para o concerto, acentuando o que possuem de menos espontâneo e lírico, aproximando-as mais do enigma da matéria escura do que da certeza da luz. Ninguém merece – nem Mozart, nem toda aquela gente que vê a obra como um ato de afirmação, em vez negação. De voz rouca e canto quebrado, Grimaud desencanta-se da “insustentável leveza” de Mozart, como chegou a afirmar – e prevalece um grito de terror perante o presente, a seta do tempo enferrujada, exatamente como a queria Silvestrov.

Keith Jarrett “Budapest Concert” (ECM, 2020)

Em “Bremen/Lausanne” (1973), queixava-se de dores nas costas. Em “The Köln Concert” (1975), do piano, que não prestava. Em “The Melody at Night, with You” (1999) sentia-se um cadáver, nas garras da doença sistémica de intolerância ao esforço. Ao longo dos anos, ao vivo, tocava e resmungava ao mesmo tempo, como se Rowlf e Statler e Waldorf, de “Os Marretas”, fossem um só. Na Via Sacra em que a sua carreira se tornou, eis que chega o disco do AVC: “Fiquei paralisado”, admitiu Keith Jarrett, em entrevista a “The New York Times” (NYT), na semana passada. “Quer dizer, o lado esquerdo do meu corpo permanece parcialmente paralisado. Ando, apoiado numa bengala, mas precisei de um ano para aqui chegar. Neste momento, só consigo tocar com a mão direita. Até sonho que estou tão mal como realmente estou – sonho que estou a tocar piano mas que as coisas se passam tal e qual como na vida real.” Perante isto, se não estivesse morto e enterrado, Oliver Sacks ia já a correr acrescentar um capítulo a “Musicofilia”. Mas não esperem que Jarrett se venha a transformar numa figura como Lionel Hampton, que, aos 80 e tal, após um derrame, tocava vibrafone com uma só mão e o mesmo sorriso de sempre estampado no rosto, ou como Pat Martino, que, a recuperar de um aneurisma, teve de voltar aos seus discos para reaprender a tocar guitarra – na conversa com o NYT, Jarrett confessou ter-se entretanto esquecido de como tocar temas que fazem há anos parte integral da sua vida. 
 
Pois, em julho de 2016, em Budapeste, no Béla Bartók Concert Hall, não teve quaisquer problemas de memória: aliás, por ser o recital onde é, e porventura por ter editado, em 2015, um disco com obras de Bartók e Barber, põe as mãos no teclado e o que se escuta, em associação livre, é o sexto volume de “Microcosmos”, de um, e “Excursions”, de outro – e, sempre que atinge o alvo, imagina-se o seu cérebro a acender e apagar, como uma máquina de flíperes. De seguida, dá-se por fragmentos de noturnos, como naquelas visões fugitivas que temos mesmo antes de cair no sono, e o jogo de contrastes é tão evidente que podíamos estar a ouvir uma canção como ‘Night and Day’ em loop. Parece uma lista do Spotify: há um blues, um estudo levantino, que se diria saído da cela de Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou, minimalistas a fazer a revisão a Debussy – isto, antes de Jarrett pedir a mão esquerda emprestada a Jerry Lee Lewis, que, por acaso, há pouco, também na sequência de um AVC, perdeu o uso da direita. Fica o assunto resolvido!

24 de outubro de 2020

“La Locura de Machuca, 1975-1980” (Analog Africa, 2020)

Aqui, há títulos de Samba Negra, Rio Latino ou La Banda Africana, o que não ajuda a situar a ação. Aliás, põe-se a compilação a tocar, com ‘Eberebijara’, e o mais estranho de tudo é não se ouvir Jorge Ben a cantar “Umbabarauma, homem gol”, o que, pelo menos, até batia certo com aquele 1975. Portanto, não estamos no Brasil, embora, a certa altura, alguém afirme: “Eu falo português” (é em ‘Le Mongui’, um tema que revela o parentesco entre ‘Soul Makossa’, de Manu Dibango, e ‘Wanna Be Startin’ Somethin’’, de Michael Jackson, mas que não nos facilita a vida). A propósito, vindos não se sabe de onde, aterram neste alinhamento os Viajeros Siderales, com ‘El Compañero’, que é um baião – ou melhor, baion (só falta a Amália, de ‘El negro zumbón’: “Tengo ganas de bailar el nuevo cumpás/ Dicen todos cuando me ven pasar/ Chica, dónde vas?’/ Me voy a bailar, el baion!”). Como é óbvio, estamos na Colômbia – para ser exato, entre as barracas de Barranquilha, a que a cangonha e a coca não chegavam pelo cano, mas quase, e onde a música era absorvida diretamente pelos poros. É normal – os bairros da lata eram laboratórios a céu aberto, quer com o passado, quer com o futuro, por inventar, e da canção, entre a matinée e a soirée, não se esperava que tivesse muito mais que o tempo de vida útil de uma célula. Era por aí, em prospeção, que andava Rafael Machuca, atento ao que se dançava nos bailes e ao que se dizia nas ruas. Quando fundou a Producciones Machuca Ltda., à exceção de Aníbal Velásquez e Abelardo Carbonó, que tinham nome firmado, lançou sobretudo bandas cuja formação foi estimulada por si – um modo de reagir mais rapidamente a porros, cumbias, vallenatos e champetas editados pela concorrência (para descrever o que daí resultava, o seu engenheiro de som, Eduardo Dávila, chamava-lhes “os filmes Série-B da música colombiana”). Por exemplo, ‘El Tornillito’, do El Grupo Folclórico, respondia a ‘Suavecito, Apretaíto’, dos Latin Brothers, na Discos Fuentes – e ainda que o “Dale pa’dentro/ Dale pa’fuera”, do refrão, tenha antecipado os Ena Pá 2000 numa boa dúzia de anos, tinham o mesmo número de parafusos a menos!

“London Circa 1720: Corelli’s Legacy” & “Il Genio Inglese: Nicola Matteis, A Neapolitan In London” (Harmonia Mundi, 2020)

Tinha havido Giovanni Florio, claro, um contemporâneo de Shakespeare que se definia como “an Englishman in Italiano”, mas, um século após a sua morte, ali, por volta de 1725, e a propósito de Matteis, o memorialista Roger North dizia que, nos seus círculos, “antes da chegada de Nicola”, não se ouvia falar de italianos. Quer isto dizer que, sim, a partir do momento que este virtuoso atravessou o Canal, não se ouviu falar de outra coisa. De facto, lendo diaristas do período, é como se, seguindo o seu exemplo, os músicos ingleses tivessem levantado os olhos do chão, pousado as violas da gamba, esticado as pernas, alongado a coluna e admirado o céu pela primeira vez. E não foram apenas os gambistas a respirar de alívio: em 1680, quando Matteis publicou uma elegantíssima “Suíte para Guitarra”, deu-se pelo acorde dissonante de uns bons milhares de alaúdes a serem largados em simultâneo. Trata-se de uma das obras em destaque em “Il Genio Inglese”, a par de uns notáveis “Ayres”, para violino – tão inovadores, por sinal, que as plateias londrinas, ao escutá-los, juravam haver mais violinistas escondidos atrás do palco. Pelo menos, assim o desejavam – pouco depois, quando seguir o contraponto de Corelli era o mesmo que ter aprendido a comer com faca e garfo, a sociedade britânica estava já tão italianizada que os nobilíssimos James Brydges, 1º Duque de Chandos, e William Capell, 3º Conde de Essex, davam guarida a Handel e a Geminiani. Na sequência de “London Circa 1700”, dedicado a gente que parece trisavó desta, como Purcell, é o instante que o La Rêveuse retrata em “London Circa 1720”, com ponto alto num concerto para flauta de Babell, violinista de Jorge I, que se diria vir do vale do Tibre, em vez do Tamisa. É mostrar os discos a Boris Johnson, s.f.f..

17 de outubro de 2020

Zazou Bikaye "Mr. Manager" (Crammed, re. 2020)

Cruzei-me com Bony Bikaye no final dos anos 90, no Zénith, em Paris, durante um concerto de Papa Wemba, e a conversa foi inevitavelmente parar a Hector Zazou: “Recordo esses tempos com muita ternura”, dizia-me o congolês. “Em Bruxelas, sentíamo-nos no centro dos acontecimentos. E tudo parecia possível. Mas discutíamos imenso, as pessoas não fazem ideia!” Ria-se, e justificava-se: “Íamos em direções opostas: eu, para a Europa; ele, para África!” Claro que a imprensa tinha percebido tudo ao contrário – Bikaye podia ser fluente em francês e lingala, ter na ponta da língua os provérbios com que a espécie adotou o bipedismo, mas convinha que não fosse instruído em muito mais. “Era difícil livrar-me do estigma de que havia ficado instantaneamente contemporâneo graças ao meu encontro com o Hector, quando, na verdade, também eu, então, o via como uma extensão de mim mesmo,” lembrava, com reticência. Tinham-se conhecido em 1983, perfilhado a binariedade no singularíssimo “Noir et Blanc” (com Guillaume Loizillon e Claude Micheli) e até a designação que escolheram o dava a entender: Zazou Bikaye, como um apelido composto. “O nosso grande feito foi o ‘Mr. Manager’[1985]”, admitia Bikaye. “Limámos as arestas mais provincianas um do outro, aplicámos uma espécie de verniz mundano ao que fazíamos e, de repente, por mais atuais que quiséssemos parecer, tínhamos em mãos um objeto não identificado em que não se dava, já, pelo Hector Zazou ou pelo Bony Bikaye, apesar de continuar palpável em Zazou Bikaye o que eles representavam individualmente, percebe?” Comparando a exemplares mestiçagens do período – o homónimo dos Touré Kunda; “Gorée”, dos Xalam; “Synchro System”, de King Sunny Adé; “À Paris”, de Mory Kanté, “Medecine”, de Ray Lema; “Electric Africa”, de Manu Dibango –, o seu maior atrevimento foi o de confirmar que a ‘música do mundo’ não tinha de estar ancorada num tempo e espaço específicos, que bastava ligá-la à corrente, e, como comprova a presente edição, com nove faiscantes temas adicionais, esperar pelo momento em que fizesse curto-circuito. E, no Zénith, quando nos despedimos, ao apertar a mão de Bikaye senti um choque!

Catoire: Revived Masterpieces (Challenge, 2020)

Em 1889, frustrado e desiludido com o meio musical moscovita, Georgy Catoire (1861-1926) foi viver para o campo. Fonte de alegria e amargura, como recordação, leva consigo um andamento do seu primeiro quarteto de cordas, em cuja pauta se lê a seguinte apreciação: “Ou muito me engano ou este Andante – com um ou outro lapso formal – foi tecido a partir de um conjunto de peças distintas. É belo, mas ainda se vêem as costuras – Pyotr Ilyich Tchaikovsky.” Incapaz de se desfazer de um documento assinado por tão decisiva figura na sua formação (“Estou maravilhado com o seu talento”, escreveu Tchaikovsky), conservou-o até ao fim dos seus dias, mesmo se decidiu pulverizar o quarteto. Semelhante destino teve um outro quarteto, inventariado como Op. 4, jamais publicado ou, decerto, escutado. Décadas depois, em Moscovo, nos arquivos do Museu da Música, deu-se não só pelo Andante desse quarteto inicial como também com um quinteto que o próprio Catoire adaptou do segundo – estão ambos aqui, em estreia mundial. Daí, um título tão categórico – pois, de um compositor que parecia ter como expoente camerístico o “Trio”, Op. 14 (igualmente neste CD), revela-se agora um par de extraordinárias peças que obriga a rever a música russa do período. De facto, tanto ou mais que Tchaikovsky, o quinteto e o Andante de Catoire têm um polo magnético em Wagner e outro em parte incerta, russa, sim, mas, por isso, e quando comparada à do Grupo dos Cinco, diversamente russa – uma Rússia cosmopolita, germanizada, em que a tradição não fosse simultaneamente ponto de partida e de chegada. Diga-se, a propósito, que se trata de obras que aderem aos princípios da Arte Nova – “Uma linha é uma força tão elementar como as outras. Muitas linhas opostas conjugam muitas forças mais,” disse Henry Van de Velde, algo que a impulsiva, densa, mas fluida e elegante escrita de Catoire traz à memória, como um Rachmaninoff em estado febril. Seja como for, no quinteto, um motivo folclórico congela a ação e sente-se-lhe o pescoço a apertar: o apelo da pátria não tanto o cachecol que conforta quanto a corda que enforca – e nunca dele esteve Catoire tão perto de se livrar.

Brad Mehldau “Suite: April 2020” (Nonesuch, 2020) & Redman, Mehldau, McBride, Blade “RoundAgain” (Nonesuch, 2020)

Que não só pela perspetiva tipográfica da coisa, quando se vê uma capa como a de “Suite: April 2020”, praticamente arrancada às páginas de um diário ou aos arquivos de uma repartição pública, calcula-se que o assunto seja sério. Recorde-se “The Earth is Not a Cold Dead Place” (2003), dos Explosions in the Sky, “The Faust Tapes” (1973), dos próprios, “Winds of Change” (1967), de Eric Burdon & The Animals e “The Story of Moondog” (1957), dele mesmo. No género, claro, a melhor e ao mesmo tempo a mais subversiva de todas é a de “Go 2”, dos XTC (1978): “Isto é a capa de um disco. Este texto é o design na capa do disco. O design pretende ajudar a vender o disco [etc. etc.] ”, lê-se. Mas os tempos não estão para ironias, e Mehldau aproveita o carácter excecional deste seu registo para avisar que “Suite: April 2020 é um instantâneo musical da vida no último mês no mundo no qual todos nós nos encontrámos.” Como é óbvio, domina mais o piano que a gramática mas, sim, o disco faz jus ao programa de festas (ou infestações). Em ‘Keeping Distance’, por exemplo, traduz metaforicamente o distanciamento social, com as mãos a aproximarem-se gradualmente das extremidades esquerda e direita do teclado e a levarem as relações musicais do tema ao limite. Isto, nos arredores de Amesterdão – se Mehldau vivesse em Rio de Mouro não se imagina que disco teria gravado. Pois, para si – e para os seus, presume-se – ‘Waking Up’, ‘In The Kitchen’, ‘The Day Moves By’, ‘Uncertainty’, ‘Waiting’, ‘Stepping Outside’ ou ‘Stopping, Listening: Hearing’ são mais motivos de admiração do que de apreensão. Mehldau corre, até, o risco de parecer insensível, tamanho o bucolismo – e só lhe falta ir para o jardim a cantarolar com um livro de Auden debaixo do braço, como a Virginia Astley de “From Gardens Where We Feel Secure” (1983). Redime-o uma sequência em que devolve o seu a seu dono – a quem não distinguia um jardim de uma plantação – e termina a tocar ‘New York State of Mind’, de Billy Joel, com Redman, McBride e Blade no pensamento, gente com a qual, aí, 25 anos após “MoodSwing”, levou com “RoundAgain” o jazz de volta aos 90s e tornou a sentir-se seguro.

10 de outubro de 2020

Rüstem Quliyev “Azerbaijani Gitara” (Bongo Joe, 2020)

Em “Black Garden: Armenia and Azerbaijan through Peace and War”, Thomas de Waal fala-nos de um terreno rigorosamente vigiado: “Depois do cessar-fogo de maio de 1994, a linha onde terminaram os combates foi-se aos poucos transformando numa barreira com 200 milhas de sacos de areia e arame farpado, dividindo ao meio o sul do Cáucaso. […] Aqui, entraram em rota de colisão duas versões da História. Para os arménios e azeris que as narram, é, em teoria, o local que separa cristãos e muçulmanos, arménios e turcos, ocidente e oriente. […] Na prática, é um pacto suicida.” Como é óbvio, Waal escrevia sobre o Alto Carabaque – na sequência de inúmeras escaramuças, de novo nas notícias. Quem era originário da região – um enclave predominantemente arménio, em território reconhecido pela ONU como parte do Azerbaijão, comummente apelidado como República do Nagorno-Karabakh, atual República de Artsaque – era o guitarrista Rüstem Quliyev, um daqueles que se cansou do travo da pólvora e do sangue na boca e, em 1992, após o Massacre de Khojaly, se mudou aos vinte e poucos anos para Baku com uma mão à frente e outra atrás. “Perdeu tudo – a casa, o emprego – e estava, sem um tostão, com mulher e filhos numa cidade onde não conhecia ninguém, a começar do zero. Foi dificílimo,” conta Vasif Javadli, um sobrinho de Quliyev, em notas de apresentação. “Mas foi então que a carreira do meu tio disparou – a tocar em aniversários, casamentos e batizados, em idas à TV.” Captados entre 1999 e 2004 (Quliyev faleceu em 2005), estes temas vêm, então, de uma memória cultural em ruínas, da guitarra de um homem que atravessa a terra-de-ninguém e conhece o exílio, convive com a perda, a resignação e a paciência mas delas se alimenta e toma posse para poder estar à altura dos acontecimentos e propor o impensável: uma música que não reconhece nenhuma outra soberania que não a que de advém da escuta profunda de si mesma. Passando pelos estágios do ovo, larva, pupa e adulto, com sintetizadores e caixas-de-ritmo, borboleteia pelo braço da guitarra em transe transcontinental e levanta voo – Quliyev, que tocava por amor, tinha aprendido a odiar fronteiras.

"Monsieur de Sainte-Colombe et Ses Filles" (Mirare, 2020)

Que não as migalhas biográficas espalhadas pelos romances de Pascal Quignard, pouco se sabe acerca da vida de Monsieur de Sainte-Colombe (ca. 1640-1700) – “A imaginação irrompe pelo real e, aos poucos, são dois mundos que se entrelaçam, ramificam e alimentam”, foi como o autor justificou fazer do paradoxo uma personagem recorrente. De Évrard Titon du Tillet, em “Le Parnasse françois” (1732), chegou-nos isto: “Antes de Marais, já Sainte-Colombe produzia todo o tipo de sons à viola. E dava uns agradabilíssimos concertos a três violas, em casa, com as filhas” (com transcrições de Louis Couperin ou De Visée pelo meio, trata-se de um efeito que este CD pretende reproduzir). De Jean Rousseau, em “Traité de la viole” (1687), isto: “É a Sainte-Colombe, em particular, que se deve a bela [técnica] da mão [esquerda] com que a viola se aperfeiçoou em definitivo, com uma articulação mais fácil e clara.” Com uma pitada de Jansenismo à mistura (pense-se no Blaise Pascal de “O último esforço da razão é reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a ultrapassam” ou “O coração tem razões que a própria razão desconhece”), foi o suficiente para Quignard escrever “Tous les matins du monde”, onde, a certa altura, Marin Marais se põe a explicar que o seu antigo professor, ao instrumento, imitava “todas as inflexões da voz humana: do suspiro de uma jovem ao soluço de um velho, do grito de guerra de Henrique de Navarra à doçura do hálito de uma criança concentrada a desenhar, do arfar desordenado e incitado pelo prazer, à gravidade quase muda […] de um homem absorto a rezar.” Quem viu a adaptação cinematográfica do livro (“Todas as Manhãs do Mundo”, de Alain Corneau), em 1991, não esquecerá a pergunta que Sainte-Colombe (Jean-Pierre Marielle) faz a Marais (Guillaume Depardieu), após uma audição, num tom feito para arrancar a crosta terrestre: “Tendes um coração para sentir? Um cérebro para pensar? Tendes ideia de para que podem servir os sons quando não se trata nem de dançar nem de alegrar os ouvidos do rei?” Sem prejuízo de tamanha solenidade, Philippe Pierlot, Lucile Boulanger, Myriam Rignol e Rolf Lislevand (que fez parte do grupo formado por Jordi Savall para gravar a música de “Todas as Manhãs do Mundo”) relembram a leveza, elegância, indiscrição e imprudência pelas quais também se tropeça nas gigas, gavotas e sarabandas destes concertos – ou melhor, por contraste, e sobretudo Boulanger, na viola da gamba baixo, mostram que, mesmo no que de mais canónico possui, Sainte-Colombe não deixa de estar em contacto com aquelas profundezas que só o coração atinge.

3 de outubro de 2020

Zonke Family "At the Studio" (Lokalophon, 2020)

Certo dia, intrigado pela súbita e inesperada vinculação da Penguin Cafe Orchestra à música do Zimbabué – cf. ‘Cutting Branches for a Temporary Shelter’, in “Penguin Cafe Orchestra” (1981) –, o jornalista suíço Thomas Bodmer perguntou ao líder da formação, Simon Jeffes, que relação tinha, ao certo, com usos e práticas tradicionais: “Nenhuma! Não tenho qualquer interesse em construções culturais desse género: nessa coisa do quem, quando, onde, como e porquê. É o som, em si, que me desperta a curiosidade: o som, que não é mais que a pura representação do espírito.” De facto, então, e consultando as fontes de que se terá socorrido – as gravações de campo desenvolvidas por Paul Berliner entre 1971 e 1975 e reunidas pela editora Nonesuch em “The Soul of Mbira: Traditions of the Shona People of Rhodesia” (1973) e “Africa – Shona Mbira Music” (1977) –, compreende-se perfeitamente a que Jeffes se referia: apelando um mais ao humano, outro ao divino, trata-se, em ambos os casos, da aplicação do princípio da imanência. Aliás, na apresentação de “Kasahwa: Early Singles” (2018), Stella Chiweshe, expoente feminino do repertório para a mbira, diz-nos que o instrumento “É uma linha direta para o além: para o espírito de pessoas, paus, pedras, pássaros.” Agora, no que se considera o primeiro registo em estúdio do matepe (um primo da mbira com 26 lâminas metálicas), são os irmãos Boyi e Anthony Zonke que nos vêm falar do poder deste intermediário entre os vivos e os mortos (note-se que, no terreno, entre 2011 e 2013, o antropólogo japonês Yuji Matsuhira realizou um conjunto de gravações com os Zonke que divulgou em dois CD-R: “Washora Mambo” e “KwaChenjedza: Matepe Music from Zimbabwe”). Herdeira de um dogma transmitido de geração em geração há uns bons 1300 anos, a família canta sobre a vida na Terra enquanto belisca lamelas com os polegares e os indicadores, os arames mais finos a fugir de dentro da cabaça, vibrando como as pernas de um inseto – zumbindo, gemendo e logo ganhando voz própria, como a máquina de escrever em “O Festim Nu”, de William S. Burroughs, pronta a devorar o mundo. Não é a Família Adams, mas arrepia.