Em “Bremen/Lausanne” (1973), queixava-se de dores
nas costas. Em “The Köln Concert” (1975), do piano, que não prestava. Em “The Melody at Night, with You” (1999) sentia-se um cadáver,
nas garras da doença sistémica de intolerância ao esforço. Ao longo dos
anos, ao vivo, tocava e resmungava ao mesmo tempo, como se Rowlf e Statler e
Waldorf, de “Os Marretas”, fossem um só. Na Via Sacra em que a sua carreira se
tornou, eis que chega o disco do AVC: “Fiquei paralisado”, admitiu Keith
Jarrett, em entrevista a “The New York Times” (NYT), na semana passada. “Quer
dizer, o lado esquerdo do meu corpo permanece parcialmente paralisado. Ando, apoiado
numa bengala, mas precisei de um ano para aqui chegar. Neste momento, só
consigo tocar com a mão direita. Até sonho que estou tão mal como realmente
estou – sonho que estou a tocar piano mas que as coisas se passam tal e qual
como na vida real.” Perante isto, se não estivesse morto e enterrado, Oliver
Sacks ia já a correr acrescentar um capítulo a “Musicofilia”. Mas não esperem
que Jarrett se venha a transformar numa figura como Lionel Hampton, que, aos 80
e tal, após um derrame, tocava vibrafone com uma só mão e o mesmo sorriso de
sempre estampado no rosto, ou como Pat Martino, que, a recuperar de um
aneurisma, teve de voltar aos seus discos para reaprender a tocar guitarra – na
conversa com o NYT, Jarrett confessou ter-se entretanto esquecido de como tocar
temas que fazem há anos parte integral da sua vida.
Pois, em julho de 2016, em
Budapeste, no Béla Bartók Concert Hall, não teve quaisquer problemas de
memória: aliás, por ser o recital onde é, e porventura por ter editado, em
2015, um disco com obras de Bartók e Barber, põe as mãos no teclado e o que se escuta,
em associação livre, é o sexto volume de “Microcosmos”, de um, e “Excursions”,
de outro – e, sempre que atinge o alvo, imagina-se o seu cérebro a acender e
apagar, como uma máquina de flíperes. De seguida, dá-se por fragmentos de
noturnos, como naquelas visões fugitivas que temos mesmo antes de cair no sono,
e o jogo de contrastes é tão evidente que podíamos estar a ouvir uma canção
como ‘Night and Day’ em loop. Parece
uma lista do Spotify: há um blues, um estudo levantino, que se diria saído da
cela de Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou, minimalistas a fazer a revisão a Debussy
– isto, antes de Jarrett pedir a mão esquerda emprestada a Jerry Lee Lewis,
que, por acaso, há pouco, também na sequência de um AVC, perdeu o uso da
direita. Fica o assunto resolvido!
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