31 de outubro de 2020

Keith Jarrett “Budapest Concert” (ECM, 2020)

Em “Bremen/Lausanne” (1973), queixava-se de dores nas costas. Em “The Köln Concert” (1975), do piano, que não prestava. Em “The Melody at Night, with You” (1999) sentia-se um cadáver, nas garras da doença sistémica de intolerância ao esforço. Ao longo dos anos, ao vivo, tocava e resmungava ao mesmo tempo, como se Rowlf e Statler e Waldorf, de “Os Marretas”, fossem um só. Na Via Sacra em que a sua carreira se tornou, eis que chega o disco do AVC: “Fiquei paralisado”, admitiu Keith Jarrett, em entrevista a “The New York Times” (NYT), na semana passada. “Quer dizer, o lado esquerdo do meu corpo permanece parcialmente paralisado. Ando, apoiado numa bengala, mas precisei de um ano para aqui chegar. Neste momento, só consigo tocar com a mão direita. Até sonho que estou tão mal como realmente estou – sonho que estou a tocar piano mas que as coisas se passam tal e qual como na vida real.” Perante isto, se não estivesse morto e enterrado, Oliver Sacks ia já a correr acrescentar um capítulo a “Musicofilia”. Mas não esperem que Jarrett se venha a transformar numa figura como Lionel Hampton, que, aos 80 e tal, após um derrame, tocava vibrafone com uma só mão e o mesmo sorriso de sempre estampado no rosto, ou como Pat Martino, que, a recuperar de um aneurisma, teve de voltar aos seus discos para reaprender a tocar guitarra – na conversa com o NYT, Jarrett confessou ter-se entretanto esquecido de como tocar temas que fazem há anos parte integral da sua vida. 
 
Pois, em julho de 2016, em Budapeste, no Béla Bartók Concert Hall, não teve quaisquer problemas de memória: aliás, por ser o recital onde é, e porventura por ter editado, em 2015, um disco com obras de Bartók e Barber, põe as mãos no teclado e o que se escuta, em associação livre, é o sexto volume de “Microcosmos”, de um, e “Excursions”, de outro – e, sempre que atinge o alvo, imagina-se o seu cérebro a acender e apagar, como uma máquina de flíperes. De seguida, dá-se por fragmentos de noturnos, como naquelas visões fugitivas que temos mesmo antes de cair no sono, e o jogo de contrastes é tão evidente que podíamos estar a ouvir uma canção como ‘Night and Day’ em loop. Parece uma lista do Spotify: há um blues, um estudo levantino, que se diria saído da cela de Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou, minimalistas a fazer a revisão a Debussy – isto, antes de Jarrett pedir a mão esquerda emprestada a Jerry Lee Lewis, que, por acaso, há pouco, também na sequência de um AVC, perdeu o uso da direita. Fica o assunto resolvido!

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