10 de outubro de 2020

Rüstem Quliyev “Azerbaijani Gitara” (Bongo Joe, 2020)

Em “Black Garden: Armenia and Azerbaijan through Peace and War”, Thomas de Waal fala-nos de um terreno rigorosamente vigiado: “Depois do cessar-fogo de maio de 1994, a linha onde terminaram os combates foi-se aos poucos transformando numa barreira com 200 milhas de sacos de areia e arame farpado, dividindo ao meio o sul do Cáucaso. […] Aqui, entraram em rota de colisão duas versões da História. Para os arménios e azeris que as narram, é, em teoria, o local que separa cristãos e muçulmanos, arménios e turcos, ocidente e oriente. […] Na prática, é um pacto suicida.” Como é óbvio, Waal escrevia sobre o Alto Carabaque – na sequência de inúmeras escaramuças, de novo nas notícias. Quem era originário da região – um enclave predominantemente arménio, em território reconhecido pela ONU como parte do Azerbaijão, comummente apelidado como República do Nagorno-Karabakh, atual República de Artsaque – era o guitarrista Rüstem Quliyev, um daqueles que se cansou do travo da pólvora e do sangue na boca e, em 1992, após o Massacre de Khojaly, se mudou aos vinte e poucos anos para Baku com uma mão à frente e outra atrás. “Perdeu tudo – a casa, o emprego – e estava, sem um tostão, com mulher e filhos numa cidade onde não conhecia ninguém, a começar do zero. Foi dificílimo,” conta Vasif Javadli, um sobrinho de Quliyev, em notas de apresentação. “Mas foi então que a carreira do meu tio disparou – a tocar em aniversários, casamentos e batizados, em idas à TV.” Captados entre 1999 e 2004 (Quliyev faleceu em 2005), estes temas vêm, então, de uma memória cultural em ruínas, da guitarra de um homem que atravessa a terra-de-ninguém e conhece o exílio, convive com a perda, a resignação e a paciência mas delas se alimenta e toma posse para poder estar à altura dos acontecimentos e propor o impensável: uma música que não reconhece nenhuma outra soberania que não a que de advém da escuta profunda de si mesma. Passando pelos estágios do ovo, larva, pupa e adulto, com sintetizadores e caixas-de-ritmo, borboleteia pelo braço da guitarra em transe transcontinental e levanta voo – Quliyev, que tocava por amor, tinha aprendido a odiar fronteiras.

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