Em “Black Garden: Armenia and Azerbaijan through
Peace and War”, Thomas de Waal fala-nos de um terreno rigorosamente vigiado:
“Depois do cessar-fogo de maio de 1994, a linha onde terminaram os combates foi-se
aos poucos transformando numa barreira com 200 milhas de sacos de areia e arame
farpado, dividindo ao meio o sul do Cáucaso. […] Aqui, entraram em rota de
colisão duas versões da História. Para os arménios e azeris que as narram, é,
em teoria, o local que separa cristãos e muçulmanos, arménios e turcos,
ocidente e oriente. […] Na prática, é um pacto suicida.” Como é óbvio, Waal
escrevia sobre o Alto Carabaque – na sequência de inúmeras escaramuças, de novo
nas notícias. Quem era originário da região – um enclave predominantemente
arménio, em território reconhecido pela ONU como parte do Azerbaijão,
comummente apelidado como República do Nagorno-Karabakh, atual República de
Artsaque – era o guitarrista Rüstem Quliyev, um daqueles que se cansou do travo
da pólvora e do sangue na boca e, em 1992, após o Massacre de Khojaly, se mudou
aos vinte e poucos anos para Baku com uma mão à frente e outra atrás. “Perdeu tudo
– a casa, o emprego – e estava, sem um tostão, com mulher e filhos numa cidade
onde não conhecia ninguém, a começar do zero. Foi dificílimo,” conta Vasif
Javadli, um sobrinho de Quliyev, em notas de apresentação. “Mas foi então que a
carreira do meu tio disparou – a tocar em aniversários, casamentos e batizados,
em idas à TV.” Captados entre 1999 e 2004 (Quliyev faleceu em 2005), estes
temas vêm, então, de uma memória cultural em ruínas, da guitarra de um homem
que atravessa a terra-de-ninguém e conhece o exílio, convive com a perda, a
resignação e a paciência mas delas se alimenta e toma posse para poder estar à
altura dos acontecimentos e propor o impensável: uma música que não reconhece
nenhuma outra soberania que não a que de advém da escuta profunda de si mesma. Passando
pelos estágios do ovo, larva, pupa e adulto, com sintetizadores e
caixas-de-ritmo, borboleteia pelo braço da guitarra em transe transcontinental
e levanta voo – Quliyev, que tocava por amor, tinha aprendido a odiar
fronteiras.
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