3 de outubro de 2020

Zonke Family "At the Studio" (Lokalophon, 2020)

Certo dia, intrigado pela súbita e inesperada vinculação da Penguin Cafe Orchestra à música do Zimbabué – cf. ‘Cutting Branches for a Temporary Shelter’, in “Penguin Cafe Orchestra” (1981) –, o jornalista suíço Thomas Bodmer perguntou ao líder da formação, Simon Jeffes, que relação tinha, ao certo, com usos e práticas tradicionais: “Nenhuma! Não tenho qualquer interesse em construções culturais desse género: nessa coisa do quem, quando, onde, como e porquê. É o som, em si, que me desperta a curiosidade: o som, que não é mais que a pura representação do espírito.” De facto, então, e consultando as fontes de que se terá socorrido – as gravações de campo desenvolvidas por Paul Berliner entre 1971 e 1975 e reunidas pela editora Nonesuch em “The Soul of Mbira: Traditions of the Shona People of Rhodesia” (1973) e “Africa – Shona Mbira Music” (1977) –, compreende-se perfeitamente a que Jeffes se referia: apelando um mais ao humano, outro ao divino, trata-se, em ambos os casos, da aplicação do princípio da imanência. Aliás, na apresentação de “Kasahwa: Early Singles” (2018), Stella Chiweshe, expoente feminino do repertório para a mbira, diz-nos que o instrumento “É uma linha direta para o além: para o espírito de pessoas, paus, pedras, pássaros.” Agora, no que se considera o primeiro registo em estúdio do matepe (um primo da mbira com 26 lâminas metálicas), são os irmãos Boyi e Anthony Zonke que nos vêm falar do poder deste intermediário entre os vivos e os mortos (note-se que, no terreno, entre 2011 e 2013, o antropólogo japonês Yuji Matsuhira realizou um conjunto de gravações com os Zonke que divulgou em dois CD-R: “Washora Mambo” e “KwaChenjedza: Matepe Music from Zimbabwe”). Herdeira de um dogma transmitido de geração em geração há uns bons 1300 anos, a família canta sobre a vida na Terra enquanto belisca lamelas com os polegares e os indicadores, os arames mais finos a fugir de dentro da cabaça, vibrando como as pernas de um inseto – zumbindo, gemendo e logo ganhando voz própria, como a máquina de escrever em “O Festim Nu”, de William S. Burroughs, pronta a devorar o mundo. Não é a Família Adams, mas arrepia.


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