10 de outubro de 2020

"Monsieur de Sainte-Colombe et Ses Filles" (Mirare, 2020)

Que não as migalhas biográficas espalhadas pelos romances de Pascal Quignard, pouco se sabe acerca da vida de Monsieur de Sainte-Colombe (ca. 1640-1700) – “A imaginação irrompe pelo real e, aos poucos, são dois mundos que se entrelaçam, ramificam e alimentam”, foi como o autor justificou fazer do paradoxo uma personagem recorrente. De Évrard Titon du Tillet, em “Le Parnasse françois” (1732), chegou-nos isto: “Antes de Marais, já Sainte-Colombe produzia todo o tipo de sons à viola. E dava uns agradabilíssimos concertos a três violas, em casa, com as filhas” (com transcrições de Louis Couperin ou De Visée pelo meio, trata-se de um efeito que este CD pretende reproduzir). De Jean Rousseau, em “Traité de la viole” (1687), isto: “É a Sainte-Colombe, em particular, que se deve a bela [técnica] da mão [esquerda] com que a viola se aperfeiçoou em definitivo, com uma articulação mais fácil e clara.” Com uma pitada de Jansenismo à mistura (pense-se no Blaise Pascal de “O último esforço da razão é reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a ultrapassam” ou “O coração tem razões que a própria razão desconhece”), foi o suficiente para Quignard escrever “Tous les matins du monde”, onde, a certa altura, Marin Marais se põe a explicar que o seu antigo professor, ao instrumento, imitava “todas as inflexões da voz humana: do suspiro de uma jovem ao soluço de um velho, do grito de guerra de Henrique de Navarra à doçura do hálito de uma criança concentrada a desenhar, do arfar desordenado e incitado pelo prazer, à gravidade quase muda […] de um homem absorto a rezar.” Quem viu a adaptação cinematográfica do livro (“Todas as Manhãs do Mundo”, de Alain Corneau), em 1991, não esquecerá a pergunta que Sainte-Colombe (Jean-Pierre Marielle) faz a Marais (Guillaume Depardieu), após uma audição, num tom feito para arrancar a crosta terrestre: “Tendes um coração para sentir? Um cérebro para pensar? Tendes ideia de para que podem servir os sons quando não se trata nem de dançar nem de alegrar os ouvidos do rei?” Sem prejuízo de tamanha solenidade, Philippe Pierlot, Lucile Boulanger, Myriam Rignol e Rolf Lislevand (que fez parte do grupo formado por Jordi Savall para gravar a música de “Todas as Manhãs do Mundo”) relembram a leveza, elegância, indiscrição e imprudência pelas quais também se tropeça nas gigas, gavotas e sarabandas destes concertos – ou melhor, por contraste, e sobretudo Boulanger, na viola da gamba baixo, mostram que, mesmo no que de mais canónico possui, Sainte-Colombe não deixa de estar em contacto com aquelas profundezas que só o coração atinge.

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