Surge inchado por esmero concetual,
este “Rebento”. Afinal, sucede na discografia do RED Trio o seu sacramento a
essoutro que se traduziria por caule – “Stem”, lançado em 2012. Por isso, à primeira
vista, suspeita-se vir tratar de crescimento. Por outro lado, e apesar de
alguma ressonância verbal se incutir assim no título que os agrupa, já o batismo
dos seus constituintes contesta a presunção: ‘Carne’, ‘Para’, ‘Canhão’, nem
mais nem menos, três temas deste modo dispostos e designados, dois no Lado A do
LP, o último no Lado B, ainda que à versão digital do álbum, perturbando o
hexassílabo, se acrescente ‘Mono’, sinóptico registo de uma atuação no festival
Sines em Jazz em que se esculpe exemplarmente o extenso vocabulário do grupo.
Há nisto uma cedência a modas – ou, pelo menos, uma premeditação – que, na
realidade, não compromete para além da medida a experiência daquilo em que,
também, nada há de casual. Não sendo formalmente invulgares, as dinâmicas nesta
música possuem uma surpreendente expressividade; e, amiúde, testemunho de uma intrigante
inteligência rítmica que dispensa esquematismos, revelam-se aqui pontos de
convergência cuja narrativa é particularmente sedutora. Dir-se-ia que Rodrigo
(piano), Hernâni (contrabaixo) e Gabriel (bateria) – não obstante privilegiarem
gestos sutis – dramatizam continuamente as proporções do triângulo em que se organizam.
E, do claustrofóbico intimismo a uma profundidade tonal quase sinfónica, embora
invariavelmente nebulosa, instantes há em que se esfuma a categoria da
improvisação de que se socorrem – ou, lá está, em que essas táticas servem
apenas para que venha o trio noutro sítio qualquer a crescer, o tal rebento a
florescer.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
22 de fevereiro de 2014
Bach: Goldberg Variations (Nonesuch, 2013) & Beethoven: Diabelli-Variationen (ECM, 2013)
Jeremy Denk
András Schiff
Aqui, mais assustador que o vulto
da simultaneidade só o da abreviação. Culpe-se Glenn Gould, que, embora adiantado,
logo à primeira preconizou umas Goldberg para a era do Twitter. Porque nada
justifica que se disponibilizem estas variações avulso em lojas digitais. De
que serve, na formulação de Landowska, possuir a “pérola negra” de Bach –
variação nº25 – se não para entendê-la, conforme caracterização de Denk, como “um
oásis de tristeza num vasto deserto de felicidade”? E como absorver o impacto
da vigésima das Diabelli, e a inquietação que deriva dessa insólita progressão
harmónica, senão pelo confronto com o formalismo que a precede? Não espantará que
um dia venha alguém pintar os “Concertos de Brandeburgo” à luz da biografia de
Karlheinz Brandenburg, teórico do MP3. É que nesta música acerca de música a
conjuntura é tudo. E Denk, nessa medida, é restaurativo. Aliás, em tempos
recentes só Angela Hewitt possuiu aproximada visão das Goldberg: reflexiva e
labiríntica, modular e cumulativa, solilóquio sobre o que há de conciliável no
mundo. Também em Schiff se revela o contexto decisivo: prova-lo o cinismo com que,
justapondo duas interpretações das Diabelli, deixa para a segunda, num
pianoforte de 1820, o verdadeiro exercício de fricção e, de certa forma,
gravitação que a obra exige. Duas lições.
“Pippermint Twist: Rockin’ Twist, Instrumentals, Exotica and Other Sounds from Spain 1958-1966” (Munster, 2013)
De forma a exaltar a paróquia, e
para contrariar o rifão dos ventos e dos casamentos, diga-se que nesta
compilação, vinda de Espanha e em nada anestesiada pela diplomacia, sobressai ‘Haz
el mono’, dos portuguesíssimos Os Duques, de Johnny Galvão, variedade
peninsular do quadrúmano que Bobby Darin e Rudy Clark celebraram em ‘Do the Monkey’. A propósito, outras ligações se estabelecem entre o que aí se passa e aquilo
que do lado de cá da fronteira, na mesma altura, se esboçava: nomeadamente quando
se mascara com ironia o provincianismo. Por isso se tropeça em façanhas equivalentes
às de Os Tártaros de ‘Ó Rosa Arredonda a Saia’ ou do Conjunto Mistério de
‘Alecrim’, que abriam a porta ao lobo a pretexto de o domesticar. Aliás, o
árbitro desta antologia, Miguel Aranega – bem como o seu par de auxiliares,
Vicente Fabuel e Ximo Bonet –, não se cansa de sugerir que a aparente
facilidade com que, em termos ibéricos, se dissipou a neblina de insurreição
que acompanhava o rock, remetendo-o para a inócua categoria do folclore, deu
azo às mais desviantes reconfigurações na sua constituição futura. Ou seja, se
não fosse necessário iludir a tirania domiciliária do conservadorismo, teria aqui havido rock, surf, twist, o diabo a quatro, sim, mas jamais se sentiria o
perfume da extraconjugalidade nestas músicas. De facto, há de tudo, do absurdamente
humorístico – ‘Twist de los elefantes’ – ao enviesadamente heurístico – ‘No
sabes bailar’ – passando pelo estritamente exótico: ‘Kana Kapila’, ‘Ali Baba
Twist’, ‘Shadrack’, ‘Shu bi du bi do slop’, exercícios de gramática reduzida
numa língua cifrada que todos souberam entender.
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15 de fevereiro de 2014
Joseph Kabasele “Le Grand Kallé: His Life, His Music” (Sterns, 2013)
Antes de mais, uma correção: ‘African
Jazz Mokili Mobimba’ e ‘Miwela Miwela’, duas canções de 1962, a primeira das
quais inconfundível e particularmente emblemática, estão nesta antologia gráfica
e fonograficamente dispostas por ordem inversa. Trata-se de um pequeno descuido
que em nada compromete o que, de outra forma, se entende por irrepreensível. Aliás,
impecavelmente subintitulada enquanto “Joseph Kabasele and the Creation of Modern Congolese Music”, esta coletânea de 38 temas gravados entre 1951 e 1970,
que inclui dez inéditos em CD e uma monografia de 104 páginas, em inglês e
francês, consagrada a esse a quem chamavam “Le Grand Kallé”, vem não só emendar
uma desatenção histórica como, também, apresentar de modo finalmente organizado
o alvor discográfico da estelar African Jazz, pioneiro engenho que os livros
recordam como a charanga de serviço no coreto da independência congolesa – relembre-se
‘Indépendance Cha Cha’, de 1960, praticamente composto à mesa das negociações no Hotel Plaza, em Bruxelas – e cujo novelo das idas a estúdio ficou ao longo dos
anos irremediavelmente emaranhado por inúmeras compilações governadas pela aleatoriedade. Assim, e de uma assentada, contraria-se aquilo que, no que a
esta música diz respeito, anda muitas vezes de mão dada: o desprezo editorial
pelos arquivos e a mania que os curadores têm de escolher os caminhos mais
arrevesados. Aqui, como numa parábola, vai-se desfiando coerentemente a meada narrativa
a que se agarrou o bolor da colonização, da superstição e das oportunidades perdidas
até se encontrar o resíduo em que originalmente se teceu o pano da emancipação política,
do desassombro espiritual e da esperança, matéria-prima para um mundo que, de
facto, nunca chegou.
A Orchestre African Jazz em Bruxelas, 1960; atrás, da esq. para a dta: Pierrot Yantula, Nico Kasanda,
Armando Brazzos e Dechaud Mwamba; na frente, da esq. para a dta: Vicky Longomba, Roger Izeidi e Joseph Kabasele
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Zehetmair Quartett: Beethoven, Bruckner, Hartmann, Holliger (ECM, 2013)
Não será necessário vasculhar excessivamente
pelos arquivos para se dar com programas tão imaginativos quanto este. Aliás,
um tempo houve em que a ECM secretariava recitais em que eram as obras a descodificar-se
umas às outras – recordem-se, nessa perspetiva, os discos de Thomas Demenga,
mas também o recente “Il Cor Tristo”, do Hilliard Ensemble, transita por quatro
séculos, já para não referir o grémio do Dowland Project, que sobre o abismo coloca
a própria noção de cronologia. Desta feita, tornam meio e mensagem a surgir cifrados,
e descortinar as razões por detrás deste alinhamento pode dar origem a arrazoados
especialmente obscuros: afinal, são 180 os anos que medeiam o “Quarteto nº 16 em Fá maior, Op. 135”, de Beethoven, apresentado em 1828, do “Quarteto nº 2”,
de Holliger, estreado precisamente pelo Zehetmair, em 2008. Mais desconcertante
ainda: entre um e outro estão o anacrónico “Quarteto em Dó menor, WAB 111”, de
Bruckner, escrito em 1862 mas resgatado ao esquecimento em 1951, e o nº 2, de
Hartmann, que assinalou o fim da Segunda Guerra Mundial e pôs termo ao “exílio
interior” do compositor. Agora, afigurar-se-á deliberadamente críptico dizer
que melhor se entende o que aqui está rumando do fim ao princípio – ou, então,
trata-se de sublinhar o que já se sabe: que nada, nem a sombra da morte, houve de
perecedouro em Beethoven. Mas a verdade é que só nos derradeiros instantes do quarteto
de Holliger, assombrados pela plangência vocal dos instrumentistas, tudo se
ilumina, quando na pauta se indica “singbarer Rest”, alusão ao “resíduo
cantável” de Celan, testemunho que, mais do que acerca de música, isto pode ser
sobre a memória dos homens que a música fabrica. E nessa medida é desarmante.
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