29 de junho de 2013

Eric Revis Trio feat. Kris Davis and Andrew Cyrille “City of Asylum” (Clean Feed, 2013)



A milagrosa data que reuniu Revis, Davis e Cyrille foi assim descrita pela pianista: “comunicávamos por emails e o Eric perguntou-me se estaria interessada em tocar com o Andrew; depois, registámos o álbum quando nos juntámos pela primeira vez”. O depoimento, sedutoramente facilitista, tomado por Ethan Iverson – líder nos Bad Plus, blogger em “Do The Math” e autor das notas de apresentação –, dissimula tanto o empenho e a disciplina por detrás da sessão quanto as casulosas virtudes dos estúdios de gravação. E refere-se vagamente ao estado de prontidão enquanto estratégia de sobrevivência para a vida numa metrópole. O que remete para este título que alude à Rede Internacional de Cidades de Refúgio – a ONG, derivada do Parlamento Internacional de Escritores que Rushdie, Banks e Soyinka fundaram em 1994, consagrada ao abrigo de escritores perseguidos. Em setembro de 2012, num trio com Orrin Evans e Nasheet Waits, Revis contactou com esta realidade ao participar no “Jazz Poetry Concert” da associação City of Asylum/Pittsburgh, sediada na Pensilvânia. É por isso apropriado que evoque aqui uma prece – ‘Prayer’, originalmente um dueto com Charlie Haden, em 1975 incluído em “Death and the Flower” – de um pianista desse Estado, aí educado por devotos da Igreja de Cristo, Cientista, que dá pelo nome de Keith Jarrett. Aliás, de certa forma, “City of Asylum” celebra a espiritualidade dos excêntricos, numa versão de ‘Gallop’s Gallop’, de um Monk sob a proteção de Nica de Koenigswarter, num tema dedicado ao ex-escravo Bill Traylor, espécie de Matisse sem a família Stein que pintava, octogenário e destituído, pelas ruas de Montgomery nos anos 40, ou numa lauda a Harry Partch, o mais desalinhado dos compositores norte-americanos. O que daí resulta é ao mesmo tempo terno, revoluto, martirizado (cita São Ciro), redimido e francamente memorável.

Feldman: Violin and Orchestra (ECM, 2013)





Carolin Widmann (vl), Frankfurt Radio Symphony Orchestra, Emilio Pomàrico (d)

Em virtude de promover uma invulgar gestão do espaço – que contrariava a cinética fundamental ao minimalismo norte-americano – e de acentuar uma suspensiva relação com o tempo, recorrem-se às mais sugestivas metáforas para apresentar a música de Morton Feldman (1926-1987). Fala-se das suas peças – quiçá pela recordação do prelúdio que Debussy publicou como “La Cathédrale Engloutie” – como se fala das profundezas de um mar gelado. Ou, sabendo-se da sua amizade por Pollock, Kooning ou Guston, relembra-se amiúde uma afinidade com os princípios do expressionismo abstrato, designadamente com aspetos não-figurativos, de uma pureza estética e enfaticamente tecidual, ocasionalmente caligráficos ou formulados sob misteriosos padrões, nesse contexto melhor traduzidos pelos ‘campos de cor’ de Rothko, Motherwell e Stella, essencialmente monocromáticos ou de um geometricismo subjetivo. E, não ignorando o fascínio que despertavam no compositor os tapetes da península anatoliana – que, por sinal, colecionava –, é comum estabelecer-se um paralelismo entre obras suas e a tecelagem turca: sublinha-se a singularidade de cada filamento e ponto, a variabilidade de volume, cor, textura e extensão na sua combinação estrutural, a iminente descontinuidade oculta na sua modular coesão, noções de simetria, repetição e escala, mas também efeitos abrasivos nisso tudo. “Violin and Orchestra” (1979) evoca tal comparação, mas reforça ainda duas questões: que para ela se deve olhar como, através da paralaxe, os astrónomos observam as estrelas, e que a espessura do seu silêncio pode mascarar uma tumultuosa perturbação nos sentidos. É o que sai claramente promulgado por Pomàrico, numa peculiar relativização daquilo que se conhece de Feldman, aqui tenso, perverso e violento como raramente foi.

Tulipa Ruiz “Tudo Tanto” (Pommelo, 2012)



A propósito de “Efêmera”, o primeiro CD de Tulipa Ruiz, falava-se aqui de uma certa configuração das coisas feita à medida das ‘redes sociais’. Agora, quase um ano após o ter partilhado em MP3 através da sua página, chega “Tudo Tanto” numa antipodal intermediação, incluído na bagagem da cantora, que nos visitou para uma série de discretos concertos. Já na reta final da inflacionada programação do “Ano do Brasil em Portugal”, nem a habitual retumbância retórica de Zé Miguel Wisnik inflamou um redundante recital, nem Joyce Moreno trouxe “Tudo” ou Ed Motta “AOR”, adaptando-se ambos a um figurino que tornava incaracterística e perversamente dispensável a apresentação dos seus novos e excelentes álbuns. E, no entanto, porventura anestesiados por uma euforia em autogénese, passa a caravana sem que ladrem os cães e nada fica para que se conte a história. Trata-se de um retrocesso paradoxal. Para mais no momento em que, no Brasil, salta para as ruas este alvoroço que contesta a disfunção de estruturas que pressupõem igualdade. É o que se ouve em ‘Joga Arroz’, a insólita reunião de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte, há um mês lançada digitalmente para influenciar a aprovação da lei do casamento civil igualitário. Em “Tribunal do Feicebuqui”, também disponibilizado no seu site, Tom Zé indica que este tipo de participação pode ser manipulado de forma autofágica. E outra alternativa não haverá para “Eslavosamba”, de Cacá Machado, ou “Passo Elétrico”, dos Passo Torto, cruciais discos brasileiros deste ano conjuntamente ausentes das lojas portuguesas. É por isso adequado que, na sua patenteada expressão de princesa-da-pop-a-concluir-tese-de-doutoramento, venha Tulipa cantar acerca da insensível arbitrariedade do tempo em que vivemos. Em ‘Script’ relembra: “Devo lhe dizer que a vida é curta”. Há alturas em que nem se dá por ela.

22 de junho de 2013

Craig Taborn Trio “Chants” (ECM, 2013)



Não se tendo propriamente tornado no pianista de serviço da casa, e para além de ter sido a editora alemã a apresentar a sua promoção a solista com “Avenging Angel”, em 2011, é certo que na última meia dúzia de anos Craig Taborn tem nutrido a proxémica visão que se associa à ECM através da sua participação em álbuns de David Torn, Roscoe Mitchell, Michael Formanek ou, já em 2013, Chris Potter. Trata-se de uma filiação tão adequada quão inesperada, porventura trazendo à memória o momento em que o destino discográfico de Marilyn Crispell se sediou na mesmíssima morada e, em particular neste “Chants”, levando a conjeturar acerca de um potencial ascendente de Keith Jarrett e Paul Bley sobre esta prática. De facto, constrangida por uma leitura avuncular, a estreia em disco de um trio que inclui Gerald Cleaver na bateria e Thomas Morgan no contrabaixo possuirá, em partes, algum do imperturbável esplendor arquitetural do primeiro e, noutras, uma pitada da flexibilidade rítmica a roçar a lassidão do segundo. Mas a verdade é que Taborn não é um estilista. Ainda que ao abrigo de uma ação editorial com jurisprudência quase exclusiva num terreno em que nem sempre se manobra com desembaraço – aquele em que ecletismo se converte em ecumenismo – e sob suspeitas de vir ministrar o dispositivo formal cantochanista que o título indicia, o que aqui se distingue é, ao invés, o desapego a qualquer contração idiomática. Mesmo quando, em ‘In Chant’, evoca a estafada sarabanda – ou ‘ária da quarta corda’ – da “Suíte para Orquestra nº3 em ré maior” de Bach, o seu propósito parece ser o de tornar acessível uma peculiar organização dos materiais na qual se privilegia tendencialmente a polirritmia e a variação tonal. É uma música de camadas, telúrica e tátil, e, muito provavelmente, não almeja a mais do que se perder por entre as estrelas.