3 de agosto de 2013

Entrevista a Gilberto Gil



Na contracapa do primeiro LP de Gilberto Gil – “Louvação”, editado em 1967 e agora relançado pela chancela britânica Soul Jazz – surgia uma presciente frase de Torquato Neto que sintetizava o peculiar omnímodo do cantor: “Há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira: Gilberto Gil prefere todas”. Foi esse postulado metodológico que Gil – talvez como nenhum outro compositor e intérprete de música popular da sua geração – patrocinou ao longo de meio século de carreira, um percurso ímpar de renúncia à complacência, de disrupção da ortodoxia artística, celebração de um incessante e paródico furor transformativo. São disso mesmo prova cabal “Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo” (Biscoito Fino/JBJ) – CD de final do ano passado em que Gil, acompanhado pela Orquestra Petrobras Sinfônica, e passando em revista clássicos do seu cancioneiro, medita acerca de espiritualidade e progresso científico – e uma caixa recentemente colocada no mercado pela Warner, reunindo “Refazenda” (1975), “Refavela” (1977), “Realce” (1979), “Raça Humana” (1984) e “Kaya N'Gan Daya” (2002). Como Gil cantava em ‘Tempo Rei’, tema de “Raça Humana” agora inserido em “The South African Meeting of Viramundo” (Dreampixies/Distrijazz), um novo álbum com o sul-africano Vusi Mahlasela: “Não me iludo/ Tudo permanecerá do jeito que tem sido/ Transcorrendo/ Transformando/ Tempo e espaço navegando todos os sentidos”. A parceria serve de banda-sonora oficiosa a “Viramundo – Uma Viagem Musical com Gilberto Gil”, documentário de Pierre-Yves Borgeaud com estreia nacional marcada para 15 de agosto, nos cinemas e – em video-on-demand – nas salas de estar. Antes disso, dia 6, Gil estará no Coliseu de Lisboa para apresentar “Fé na Festa”, o CD de 2010 consagrado aos ritos juninos. Tratar-se-á de uma revisitação ao eufórico repertório há precisamente dois anos levado ao palco do CCB, ancorado num trio de virtuosos: Nicolas Krassik, Sergio Chiavazzoli e Mestrinho do Acordeom. Tudo isto serviu de pretexto para a seguinte conversa.

Vivem-se tempos de alvoroço social e político em Portugal e no Brasil e eis que surge o Gilberto dizendo “fé na festa”. Que importância tem a proclamação?
É fundamental agora como sempre foi. Nem só de pão vive o homem, já dizia Jesus Cristo, um dos grandes mestres da humanidade. E, de novo, a festa é fundamental como sustentação da alma e do espírito em qualquer tempo e circunstância.

Acompanho as arruadas e recordo-me de uns versos seus, de ‘Questão de Ordem’: “Se eu ficar em casa/ Fico preparando/ Palavras de ordem/ Para os companheiros/ Que esperam nas ruas/ Pelo mundo inteiro/ Em nome do amor”. O que lhes diria hoje?
A mesma coisa. A palavra de ordem continua a mesma. As dificuldades da vida material exigem sempre contrapartidas no mundo espiritual e as manifestações atendem a esses dois aspetos: melhores condições de vida material e espiritual. Mais harmonia, mais compreensão, mais partilha, mais corpo e mais alma.

Como tem acompanhado a situação?
Os governos em qualquer parte do mundo trabalham sempre em função de agendas já estabelecidas, diagnósticos feitos em relação à vida e à sociedade. Estas manifestações de agora – ainda que repitam muitas outras que já se deram na história da humanidade – trazem também novidades possibilitadas pelas novas formas de comunicação, pelas redes sociais, pelo peer-to-peer, pela cultura das grandes festas. Então têm um pouco da tradição do ativismo político mas têm também muito da cultura contemporânea das classes médias mundiais: política como entretenimento e entretenimento como política. No Brasil, na Espanha, nos EUA, na Grécia, no Egito, na Turquia… em todo o lugar.

Quando ouvi “Fé na Festa” pressenti um paradoxo entre a sua ação e o seu pensamento. Como se o regresso ao ideário junino de exaltação não ocultasse uma amarga consciência do tempo histórico que vivia. Foi projeção minha?
Não. A música da festa junina, nordestina, tem os elementos de celebração, regozijo e satisfação em relação à vida, sim, mas também embute a reserva, a queixa, o cuidado em relação aos problemas humanos. Na festa também cabe o questionamento. O carnaval é um exemplo disso. Mesmo nos carnavais europeus – em Nice, Antuérpia, Veneza – ou nos de Nova Orleães ou do Rio... Há sempre a troça, o chiste, a crítica, a sátira.

Já em “Fé na Festa – Ao vivo”, testemunha-se um momento de transcendência na aparição em palco de Dominguinhos [que viria a falecer no dia a seguir a esta entrevista, após meses em coma num hospital de São Paulo]. Atentando aos discos dele dos anos 60 e àqueles dos anos 70 em que se aproximou de si, de Donato, Gal ou Bethânia, encontra-se uma figura artística de grande impacto cultural. É valorizada?
Ele é uma convergência até certo ponto rara entre o músico de origem rude e o mundo sofisticado da grande música popular mundial. Junta Luiz Gonzaga – e todos os criadores do folclore nordestino – aos grandes instrumentistas do jazz, da música francesa, da música italiana, aos grandes acordeonistas do mundo. Quando da aproximação comigo o sentido dessa convergência já se fazia muito claro, tendo em vista o facto de que também eu tenho na minha formação essa mesma bifurcação: somos ciosos das tradições simples da música do povo mas também muito interessados no aperfeiçoamento técnico e temático da grande música popular universal. Dominguinhos terá de ser reconhecido pela sua grande contribuição ao desenvolvimento concetual da música moderna brasileira.

Penso igualmente em Mandela, novamente a unir um povo sem que se lhe ouça a voz. Como era para si cantar “Senhor, irmão de Tupã, fazei/ Com que o chicote seja por fim pendurado/ Revogai da intolerância a lei/ Devolvei o chão a quem no chão foi criado” em “Oração pela Libertação da África do Sul” em pleno apartheid?
Essa canção foi-me solicitada por Mário Schenberg que, durante o período mais crucial da luta liderada por Mandela, sentia que era necessário manifestar a solidariedade da cultura brasileira ao povo sul-africano. E ocorreu-me estabelecer uma relação entre a saga histórica dos povos africanos e a dos povos ameríndios [aludindo no primeiro verso a uma expressão divina guarani]. Os problemas causados pela opressão – tanto aos povos ameríndios quanto aos povos africanos ou a boa parte dos povos asiáticos – têm sido de difícil abordagem e solução. Em toda a América do Sul persistem resíduos dramáticos de apartheid socio-político-económico. Mas a luta continua.

Muitas canções suas criticaram a construção, pelo regime militar, de uma identidade cultural brasileira contrária a uma natureza de diversidade. Passados todos estes anos, enquanto exerceu funções, como reagia a tendências de homogeneizar ideologicamente a imagem do país?
A reação possível, durante o nosso trabalho no Ministério da Cultura, partia da constatação de que o líder do governo, o nosso presidente [Lula da Silva], trazia naturalmente compromissos com a identidade diversa, com a diversidade identitária do Brasil. A ideia do multiculturalismo policêntrico, que já impregnava as ações e as movimentações de entidades como a UNESCO, acabou por marcar também a agenda do Ministério nesse tempo. Identidades cambiantes, diversidade cultural, protagonismo popular... São coisas que influenciaram os programas e os projetos da nossa gestão.

O documentário “Viramundo” serve de pretexto a que se relancem estas questões e acompanha-o numa ida à África do Sul, onde Vusi Mahlasela sintetiza para as câmaras um credo da filosofia ubuntu: “uma pessoa é uma pessoa por causa das outras pessoas”. O que retira daí?
A confirmação de que a máxima ubuntu é a máxima republicana. Na república, a coisa pública é a coisa de todos, do mundo da produção material, do mundo da construção física da riqueza e também da realização do mundo simbólico da cultura. Ainda que já soubéssemos e acreditássemos nisso, ter estado com Vusi, com os aborígenes, com os índios da Amazónia ou com o Ministro da Educação australiano Peter Garrett [ex-vocalista da banda Midnight Oil] só serviu para validar tudo isto.

Assisto ao filme e penso naquela geográfica e ontológica duplicidade de ‘Oriente’: “Se oriente, rapaz/ Pela constelação do Cruzeiro do Sul”. As suas viagens parecem traduzir uma mesmérica presença da esperança no hemisfério sul. Que revolução aí falta fazer?
Resta continuar a fazer a revolução de cada dia, junto com o sol, junto com os astros, junto com todas as revoltas, junto com toda a esperança. A revolução, a ser continuada, é a revolução do viver.

Noutra cena do documentário, após o protocolo de boas-vindas ao país, é confrontado por um patriarca aborígene com esta questão: “como é que você é ministro de um governo se você é negro”. O que sentiu?
Dei como resposta a minha perceção de que, apesar dos pesares, as coisas têm andado no Brasil. Os negros, originalmente submetidos e escravizados, têm conseguido algum grau de emancipação na vida política, económica e social do país. A minha resposta continha a esperança que esses avanços se possam comprovar num futuro próximo, e que a experiência brasileira, caso suceda, sirva de exemplo para outros povos. Vale a pena ressalvar que os aborígenes têm um alto grau de consciência da sua missão redentora e restauradora, de um passado que se tentou apagar na Austrália e um pouco menos na Nova Zelândia e que, nesse sentido, os avanços que possamos ter conseguido no Brasil vão ao lado dessa sua situação atual.

A propósito disso e da questão ministerial, quando há um ano atrás falava com Susana Baca [ex-Ministra da Cultura do Peru, no cargo durante cinco meses] perguntei-lhe acerca do melhor e pior na experiência. Respondeu-me: “O pior foi sentir que me nomearam como uma espécie de mucama que vinha fazer a limpeza ao gabinete antes dos doutores brancos tomarem posse”. O que diria o Gilberto?
É impossível detalhar ou minuciar o que foi… tantas coisas foram boas, tantas outras ruins. Tantas coisas conseguidas e tantas outras abortadas, mas é sempre assim. Sobrevivi eu, sobreviveu o Brasil. Já as dificuldades da Susana foram muito maiores do que as minhas. Há que lembrar que o Brasil tem uma situação comparativamente melhor do que a do Peru – e a de muitos outros países – em relação aos processos de inclusão e de resgate da dívida histórica com os negros ou com os índios. Eu, possivelmente, beneficiei desse pequeno melhor. Fiquei 6 anos e não 6 meses.

Porque o trabalho sobre a inclusão me parece ter norteado parte visível da sua ação governativa, pergunto-lhe: preconizaram a presidência de Lula e a posterior eleição de Dilma uma correção de assimetrias na sociedade brasileira?
Pois, voltamos à questão anterior: o Brasil tem um ligeiro avanço em todas as questões de inclusão e resgate de dívidas históricas. Certamente Lula tinha em mente várias dessas questões, inclusivamente a questão negra, quando me fez ministro. Não só Lula individualmente mas como representante de um sentimento de toda a nação brasileira. A presidente mulher veio logo em seguida como atendimento a mais uma dessas revindicações históricas.

No LP “Viramundo”, de 76, exclamava em ‘Queremos Saber’: “Queremos saber/ O que vão fazer/ Com as novas invenções/ Queremos notícia mais séria/ Sobre a descoberta da antimatéria/ E suas implicações/ Na emancipação do homem/ Das grandes populações/ Homens pobres das cidades/ Das estepes, dos sertões”. É a questão da participação a mais importante nas democracias contemporâneas?
Sem a menor dúvida. Os processos civilizacionais induzidos especialmente pela ciência e pela tecnologia apontam hoje para uma valorização cada vez maior da participação dos indivíduos. A exigência de transparência nas gestões públicas, de protagonismo popular, de empreendedorismo nos setores mais simples da sociedade, tudo isso tem como resumo a palavra participação.

Refletiu em muitas das suas canções acerca dos avanços do conhecimento técnico e científico. Há quase 40 anos cantava em ‘Cibernética’: “Cibernética/ Eu não sei quando será/ Mas será quando a ciência/ Estiver livre do poder/ A consciência, livre do saber”. É um estágio utópico de que nos aproximámos ou afastámos civilizacionalmente?
É difícil dizer exatamente se progredimos ou regredimos. As conquistas da ciência e do saber são palpáveis. Ao mesmo tempo, a base espiritual sobre a qual essas vantagens poderiam nos dar frutos parece não o ser. Não estamos seguros de que paralelamente ao desenvolvimento técnico-científico tenhamos conseguido um desenvolvimento espiritual. Já chegámos a um grau de comprometimento muito grande das condições de salubridade no planeta. Não sei se haverá tempo para esperarmos por uma tomada de consciência geral da humanidade em relação às reais necessidades para a garantia do seu futuro. Vamos aguardar e lutar.

É óbvio que a sua ação política foi uma aplicação daquilo que já defendia enquanto artista. Mas será hoje o inverso verdadeiro? É o cantor e compositor Gilberto Gil influenciado por aquilo que experienciou enquanto Ministro da Cultura?
Certamente que sim. Há um depósito na alma que deve ter guardado lá muitas coisinhas desse tempo. Na preparação das canções, essas épices devem surgir. Como em ‘Não Tenho Medo da Morte’ [tema de “Banda Larga Cordel”, 2008], quando canto: “Assim como um presidente/ Dando posse ao sucessor/ Terei que morrer vivendo/ Sabendo que já me vou”. De onde teria saído esse presidente para entrar na canção? Muitas outras dessas coisinhas devem estar prontas para sair da dispensa para a cozinha.

Caetano Veloso cita frequentemente esta frase de Rogério Duarte: “Gil é o profeta, Caetano é apenas seu apóstolo”. Qual a origem dessa oracular disposição?
Caetano é o número um e eu o número dois. Ele é o criativo e eu o recetivo. Cabe muita coisa na minha alma. Eu sou pluralista mesmo. Sou um artista devotado ao sentido panótico da visão. Vejo pela frente, pelos lados, pelas costas, pela sola dos pés, pelo topo da cabeça. Gosto de parecer um farol jogando luzes circularmente pela noite dentro.

Sem comentários:

Enviar um comentário