Florilegium Musicum de Paris; Karel
Goeyvaerts
Entre um CD
dedicado ao sempre eruptivo Michel Magne e outro ao perene desalinhado Harry
Partch na fornada inicial desta subsidiária da Finders Keepers, corre o risco de
passar despercebida a reedição de uma menosprezada obra-prima de meados dos
anos 70. Composta quando Karel Goeyvaerts (1923-1993) trabalhava no Instituto
para Psicoacústica e Música Eletrónica (IPEM) da Universidade de Gante, “Pour Que Les Fruits
Mûrissent Cet Été” representa um primeiro passo num derradeiro estirão – de que
as “Litanias” e a ópera “Aquarius” são o ápice – rumo a uma produção de
síntese, não menos austera que em precedentes e pioneiros ensaios seriais mas
já assombrada pelo impulso de impor ao caos alguma ordem reconhecida.
Dizia o belga: “A nossa capacidade em definir
uma posição de independência em relação ao caos é o que nos garante um futuro
livre, revolucionando linguagens e possibilitando uma nova hierarquia em que
cada um estará no lugar certo de acordo com as suas capacidades, valor e
importância enquanto indivíduo”. Carregada de simbolismo
astrológico-apocalíptico, a afirmação reflete-se aqui através de uma
organização episódica e repetitiva, em que durante cerca de meia hora a
evolução procede de sensações subjetivas ao nível da altura, intensidade e
timbre dos materiais. Ou seja, é o ouvinte que vai atribuindo à peça as suas
mais extáticas e meditativas propriedades. Estamos portanto no domínio do
ritual (cuja relevância formal reforça “Op Acht Paarden Wedden”, para oito fitas
magnéticas de encadeação aleatória). O que talvez explique este ritmo comparável
ao do batimento cardíaco normal ou um título a sugerir um ciclo de renascimento
e fertilidade. Desencadeado por sete instrumentistas do ensemble de música medieval e barroca liderado por Jean-Claude Malgoire, este paradoxo temporal – um longo hoquetus orquestrado por cornetins,
trombetas, bombardinos, flautas, órgão, alaúde e violones – sublinha a
transitoriedade do agora. Passou-se em 1975 mas podia ter-se dado em 1475… ou em
qualquer instante entre um e outro momento.
Trata-se
de uma vaga conexão histórica que, de certa forma, “Ach Golgatha!” torna mais
explícita, no caso associando-se direta e perversamente a obra para harpa,
percussão e órgão ao homónimo recitativo musicado, em 1727, por J. S. Bach em
“A Paixão Segundo São Mateus”. Se já o original, que usa as 12 notas da escala
cromática, parecia espelhar a agonia de Jesus na cruz, esta expansiva contorção
ganha um perfil demencialmente cerimonial, com membranofones e idiofones
martirizados numa espécie de burlesco primitivista sem redenção possível.
Recorrendo à coleção de instrumentos de percussão africanos, asiáticos e
sul-americanos de André van Belle – professor no Conservatório de Bruxelas e
colaborador científico no Museu dos Instrumentos de Música (MIM) da mesma
cidade -, Goeyvaerts evoca uma violenta energia pré-verbal ciente de que quem o
escuta recorda as linhas do oratório de Bach: “Ah Gólgota, infeliz Gólgota!/ O Senhor da
Glória/ deve, de modo ultrajante, perecer aqui/ A bênção e salvação do mundo/ foi
colocada como uma maldição na cruz/ Ao criador de céus e terras/ devem terra e
ar ser retirados/ O inocente deve aqui morrer como culpado// Ah Gólgota,
infeliz Gólgota!”. E, ao servir-se de madeiras e metais de remota
geografia, faz algo ainda mais terrível: transforma a Terra inteira num palco
de atroz sofrimento e em algozes todos os que a percorrem. Devia ser mais
ouvido.
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