Muita água passou por debaixo da
ponte desde que, há praticamente vinte anos, um pioneiro volume na antologia fonográficahomónima à dos célebres guias de viagem britânicos compendiava excêntricas
tendências de mercado: de facto, em 1994, “The Rough Guide to World Music” reunia
parcelas que aparentavam contrariar a hegemonia da cultura anglo-saxónica. No
entanto, um olhar mais atento revelava a perversa combinação de fatores que, desde
então, como um pecado original, vem maculando a coleção: escassez de material
inédito, seleção de repertório eminentemente doméstica e de disputável certificação,
favorecimento de expressões artísticas análogas às ocidentais, atração por
híbridos estilísticos, inclusão de nomes apenas circunstancialmente
impactantes. O tomo inaugural, exemplar para esta tese, mais não fazia do que
passar em revista a imprensa especializada, olhar para as tabelas de vendas e
colher a fruta madura: ‘Sama Rew’, com os senegaleses Pape Seck, Medoune Diallo
e Nicolas Manheim, tinha origem nas sessões dos transatlânticos Africando organizadas
pela Syllart; ‘Dugu Kamelenba’ provinha do segundo álbum ‘internacional’ da
maliana Oumou Sangaré, editado pela World Circuit; ‘Zaiko Wa Wa’, gravado em
1976 pelos congoleses Zaïko Langa Langa, havia sido na altura estreado em CD pela
RetroAfric; ‘Diandoli’ figurava numa das coletâneas que a Sterns dedicava às antigas
cassetes da senegalesa Étoile de Dakar; ‘Tanola Nomads’ confirmava o sucesso de
“Out of Tuva”, o disco com que a Crammed projetou a assombrosa voz de Sainkho
Namtchylak. E por aí fora.
Hoje, quando a série ultrapassa os 300 títulos, seria injusto
não reconhecer que algo mudou. Por mera acumulação patrimonial ou por faltarem
pontos no mapa por assinalar, os guias não cedem já à avassaladora torrente de trivialidades
turísticas que normalmente vulgarizam os pontos de chegada em virtude do número
de preconceitos adquiridos no ponto de partida. E desde 2009, quando cada compilação
passou também a incluir um segundo CD consagrado a um só artista, as coisas ficaram
potencialmente interessantes. É o caso de “The Rough Guide to Latin Psychedelia”,
que ao lisérgico composto de ideologia mestiça e fantasia tropicalista do
primeiro CD (com ilustres representantes do psicadelismo latino-americano como Fruko e os Afrosound, El
Opio, Pakines, Traffic Sound ou Spiteri ao lado de replicantes atuais como os Chicha
Libre) adiciona um outro preenchido com remessas de paranoia ameríndia concebida
pelos Destellos, os geniais sincretistas da chicha
peruana. A mesma função cumprem Corraleros de Majagual em “The Rough Guide toCumbia”, tornando-se os temas do grupo elencado por Fruko, Alfredo Gutiérrez ou
Calixto Ochoa pelo menos tão vibrantes quanto as variações de vallenato e cumbia afro-colombiana promulgadas
no CD 1 por Pacho Galán, Aníbal Velásquez ou Integracíon. Já o desequilíbrio de
“The Rough Guide to African Disco” (aproveitam-se o Tony Allen da fase “No
Descrimination”, o ganês Pat Thomas, as nigerianas Lijadu Sisters e os seus
compatriotas Mixed Grill) não se redime com o bónus de “Soul on Fire”, um
daqueles LP dos anos 80 em que agentes do soukous
– aqui, Vincent Nguini e Syran Mbenza – revisitavam clássicos da soul. Por fim,
“The Rough Guide to Psychedelic Brazil” prolonga uma frustrante relação dos
ideólogos dos Rough Guides com a música brasileira: nem à décima tentativa se esgravata
muito para lá da superfície, com demasiados produtores contemporâneos (Laranja
Freak, Siba, Graveola, Lucas Santtana e um CD integral para o boçal Jupiter
Maçã) para que se justifique o enunciado da capa, e dependendo-se quase
exclusivamente das reedições da Mr. Bongo (que licencia Lula Côrtes, Flaviola
ou Marconi Notaro) para que Tom Zé não surja como o único testemunho do momento
histórico que se pretende retratar.
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