Em 1967,
já um relutante astro do r&b, mas, ainda, a um par de anos de, na sequência
de álbuns que vai de “What’s Going On” a “Here, My Dear”, pincelar na abóboda
celeste do género esse fresco de contornos messiânicos em que figurava
alternadamente como sindicalista, sátiro e sacerdote, Marvin Gaye comissionou a
escrita de arranjos para um conjunto de baladas que, presumia, na senda de
Sinatra, lhe restabeleceriam a identidade artística na corrente principal da
música popular norte-americana. Mas, após frustrantes visitas à cabine de som, e
mesmo com a orquestra captada, suspendeu o malogrado projeto. “Na altura não
quis que editassem esse material”, explicou mais tarde ao seu biógrafo, David Ritz: “Precisava de crescer emocionalmente para compreender as canções. Tinha
de sofrer”. E, durante uma década, numa exposição tão ingénua quão esclarecida,
mas pejada de contradições e incongruências, outra coisa não fez do que cantar
acerca daquilo que de mais brutal e desapiedado encontrava na natureza humana.
No entanto, sem que alguém o soubesse, mantinha na gaveta as bobinas dessas
abortadas sessões. Até que num invernoso serão, incertamente datado entre 1978
e 1979, desceu ao seu estúdio caseiro, pôs a fita a rolar e ligou os
microfones. “Apesar de mergulhado numa profunda depressão causada pela minha
relação com a Jan [Janis Hunter, a sua segunda mulher], consegui finalmente
gravá-las”, confessou a Ritz: “Bastou-me uma noite… e a sabedoria acumulada ao
longo de uma vida inteira de dor”. De forma algo inesperada, o catártico e
anacrónico resultado dessa iniciativa, epítome da graça e brio no confronto com
o cânone, ficou arquivado pela Motown, até que, em 1997, foi postumamente
colocado no mercado com o sugestivo título “Vulnerable”.
Aos 41
anos, Gregory Porter terá aprendido algumas lições com esta história. Que, por
exemplo, para um compositor ambicioso, perseguir a musa pode implicar uma fuga
à sua zona de conforto – nada, aliás, que o aflija, ou não tivesse no passado
recente, pelos seus discos iniciais, discretas nomeações aos Grammy quer na
categoria do jazz quer na do r&b. Ou, inclusivamente, que, não obstante o
sucesso atingido, se vive de empréstimo no contacto com poderosos grupos
económicos. Nessa perspetiva, saudado como “nova voz do jazz” ou “próximo
grande cantor de jazz” pela imprensa internacional, Porter serve no momento
atual interesses muito particulares: é o primeiro artista do novo conglomerado
criado pela Blue Note Records e pela Universal Classics and Jazz em consequência
da aquisição da EMI (empresa-mãe da Blue Note) pelo Universal Music Group. Como
tal, desconfia-se que a magnitude do seu talento seja empolada por uma
conjuntura de otimismo – e pela necessidade de recuperar capitais – numa indústria
em crise. Mas associa-se fundamentalmente com a parábola de “Vulnerable” porque
reconheceu virtudes em adiar a gratificação, optando por se dedicar a certos
temas apenas quando do gospel houvesse retirado a investidura laudativa em cada
sílaba, no jazz estudado a maneira de elevar a voz à condição de prisma e da
soul resgatado a importância da intimidade com a sua audiência. Tudo isso está
patenteado neste “Liquid Spirit” de um modo elegante, embora pouco original, numa
bissetriz interpretativa traçada entre a suave contenção de Nat King Cole e o
áspero descomedimento de Van Morrison, que em Gaye possui um derradeiro
vínculo: também este afável gigante, antigo bolseiro universitário de mérito
desportivo, parece saber que não há no mundo quem não seja vulnerável ao amor.
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