5 de outubro de 2013

Gregory Porter “Liquid Spirit” (Blue Note, 2013)



Em 1967, já um relutante astro do r&b, mas, ainda, a um par de anos de, na sequência de álbuns que vai de “What’s Going On” a “Here, My Dear”, pincelar na abóboda celeste do género esse fresco de contornos messiânicos em que figurava alternadamente como sindicalista, sátiro e sacerdote, Marvin Gaye comissionou a escrita de arranjos para um conjunto de baladas que, presumia, na senda de Sinatra, lhe restabeleceriam a identidade artística na corrente principal da música popular norte-americana. Mas, após frustrantes visitas à cabine de som, e mesmo com a orquestra captada, suspendeu o malogrado projeto. “Na altura não quis que editassem esse material”, explicou mais tarde ao seu biógrafo, David Ritz: “Precisava de crescer emocionalmente para compreender as canções. Tinha de sofrer”. E, durante uma década, numa exposição tão ingénua quão esclarecida, mas pejada de contradições e incongruências, outra coisa não fez do que cantar acerca daquilo que de mais brutal e desapiedado encontrava na natureza humana. No entanto, sem que alguém o soubesse, mantinha na gaveta as bobinas dessas abortadas sessões. Até que num invernoso serão, incertamente datado entre 1978 e 1979, desceu ao seu estúdio caseiro, pôs a fita a rolar e ligou os microfones. “Apesar de mergulhado numa profunda depressão causada pela minha relação com a Jan [Janis Hunter, a sua segunda mulher], consegui finalmente gravá-las”, confessou a Ritz: “Bastou-me uma noite… e a sabedoria acumulada ao longo de uma vida inteira de dor”. De forma algo inesperada, o catártico e anacrónico resultado dessa iniciativa, epítome da graça e brio no confronto com o cânone, ficou arquivado pela Motown, até que, em 1997, foi postumamente colocado no mercado com o sugestivo título “Vulnerable”.

Aos 41 anos, Gregory Porter terá aprendido algumas lições com esta história. Que, por exemplo, para um compositor ambicioso, perseguir a musa pode implicar uma fuga à sua zona de conforto – nada, aliás, que o aflija, ou não tivesse no passado recente, pelos seus discos iniciais, discretas nomeações aos Grammy quer na categoria do jazz quer na do r&b. Ou, inclusivamente, que, não obstante o sucesso atingido, se vive de empréstimo no contacto com poderosos grupos económicos. Nessa perspetiva, saudado como “nova voz do jazz” ou “próximo grande cantor de jazz” pela imprensa internacional, Porter serve no momento atual interesses muito particulares: é o primeiro artista do novo conglomerado criado pela Blue Note Records e pela Universal Classics and Jazz em consequência da aquisição da EMI (empresa-mãe da Blue Note) pelo Universal Music Group. Como tal, desconfia-se que a magnitude do seu talento seja empolada por uma conjuntura de otimismo – e pela necessidade de recuperar capitais – numa indústria em crise. Mas associa-se fundamentalmente com a parábola de “Vulnerable” porque reconheceu virtudes em adiar a gratificação, optando por se dedicar a certos temas apenas quando do gospel houvesse retirado a investidura laudativa em cada sílaba, no jazz estudado a maneira de elevar a voz à condição de prisma e da soul resgatado a importância da intimidade com a sua audiência. Tudo isso está patenteado neste “Liquid Spirit” de um modo elegante, embora pouco original, numa bissetriz interpretativa traçada entre a suave contenção de Nat King Cole e o áspero descomedimento de Van Morrison, que em Gaye possui um derradeiro vínculo: também este afável gigante, antigo bolseiro universitário de mérito desportivo, parece saber que não há no mundo quem não seja vulnerável ao amor.

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