26 de outubro de 2013

Heart Beat - Doclisboa 2013



No Huambo diz-se que os cães ladram à noite porque veem fantasmas, e que passa também a vê-los quem nos seus próprios olhos depositar as ramelas arrancadas aos rafeiros. Wilker Flores ouviu a estória mas não a testou. Afinal, recorda um tempo em que necrófagas matilhas vagueavam pelas ruas, alimentando-se de corpos que a chuva de obuses não deixava recolher. A sua cidade, arrasada pela guerra civil, ressurge do entulho. Por isso, pegando numa guitarra e cantando acerca de mortos-vivos, dispensa da impostura que se diria congenial ao único género em que concebe criar: o death metal. “Death Metal Angola”, de Jeremy Xido – a revelação da secção “Heart Beat”, do Doclisboa –, grava a catarse. Mas, no que possui de mais fundamental, honra pungentemente os rudimentos do rock, sublinhando-lhe a índole coligativa e entendendo-o enquanto mecanismo de libertação e reivindicação. Quando o filme termina, com Wilker e a namorada (Sónia Ferreira, diretora do orfanato Okutiuka) organizando um festival para grupos de hardcore do país inteiro, não se imagina outra banda-sonora para a nação.

Mas ela existe, claro. E tão antipodal, ainda que não menos hiperbólica, quanto a que “I Love Kuduro”, de Mário Patrocínio, documenta: Lambas, Francis Boy ou Cabo Snoop passeiam pela favela como salvadores da pátria, Príncipe Ouro Negro e Presidente Gasolina violam freneticamente a fonética, bailarinos trepam paredes, Titica – transexual – demonstra que isto é sobre a conquista da independência, a começar pela do corpo. O realizador seduz-se pelo feitiço da periferia. Algo a que não é estranho o dinamarquês Andreas Johnsen, de que o recente “Kidd Life” se inclui na presente seleção. Aí acompanha-se o dia-a-dia de Nicholas Westwood Kidd, catapultado para o estrelato graças ao sucesso que uma sua, rasteiríssima, canção de escárnio obteve no YouTube. Filmado com remorso e fascinação, tem numa declaração de Kidd incentivo para que se desista de procurar uma disposição oracular nas manifestações artísticas da juventude: “fiquei chocado ao perceber como as pessoas são tão pouco exigentes”.

Também na ténue linha que aproxima o natural do artificial se fixa Shane Meadows em “The Stone Roses: Made of Stone”, parábola de ascensão e queda dedicada à banda de Manchester, padroeira dos socialmente inaptos. Registado a propósito de um reavivar de carreira – os Stone Roses estiveram 16 anos sem tocar – não ilude evangélicas táticas promocionais, mas reforça uma contradição inerente aos cultos na música popular: quão mais singular se prova um acontecimento, mais as suas testemunhas buscam repeti-lo. Curiosamente destacam-se na mesma mostra alguns filmes de Les Blank, este ano falecido, diligente colecionador do insólito e de expressões culturais suburbanas, cujo olhar jamais decifrou perplexidades. Perspetiva que contamina “Olho Nu”, de Joel Pizzini, evocativo e memorialista ensaio sobre Ney Matogrosso, sensual e inesperado como a flor num cato. Uma última palavra para o cândido “Bloody Daughter”, retrato da pianista Martha Argerich realizado pela sua filha, Stephanie, porventura indício de que a intimidade não é a derradeira fronteira e que a vida, essa, como a certa altura diz a argentina para a câmara, será sempre outra coisa.

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