26 de outubro de 2013

Milton Nascimento “Uma Travessia: 50 Anos de Carreira ao Vivo” (DVD Universal, 2013)



Travessia. Não por acaso é a última palavra que se lê naquele cemitério para a unidade linguística que se chamou “Grande Sertão: Veredas”, quando infere Riobaldo: “O diabo não há! […] Existe é homem humano. Travessia”. Como o narrador do romance de João Guimarães Rosa, Milton Nascimento encontrou o rumo no que a vida possui de mais transitório, entre a imanência e a transcendência. Ou seja, atravessando mais misérias e tristezas do que aquelas de que dão conta os cronistas (orfandade, discriminação, encarceramento, proscrição, tortura, depressão), o seu maior ensinamento terá porventura derivado desse momento em que preferiu a dúvida à certeza, a reversibilidade à fatalidade. Em 1967, na segunda edição do Festival Internacional da Canção, descreveu-o assim: “Solto a voz nas estradas/ Já não quero parar/ Meu caminho é de pedra/ Como posso sonhar”, antes de concluir, catarticamente, “hoje faço com meu braço meu viver”. Em 1976, nas páginas de uma revista (a efémera “Música do Planeta Terra”), Caetano Veloso apresentou-o de modo genesíaco: “Milton vinha vindo sozinho pelo caminho e todas as estrelas brilhantes se apagaram à sua passagem para só voltarem a brilhar em sua voz quando ele cantasse. E o céu ficou negro e sem luz e então houve muito mais luz”. O compromisso de Milton está na terra, apesar de aparentar despontar entre os astros.

Embora, ao que tudo indica, em 1956 já atuasse com o grupo Luar de Prata – que chegou a gravar um 78rpm com versões dos Platters e de Steve Lawrence –, Milton comemorou em 2012 os 70 anos de vida e os 50 de carreira (para esta avaliação parece ter sido contabilizado o período decorrido desde ‘Barulho de Trem’, um original seu em 1962 captado em estúdio com o obscuro Conjunto Holiday, a par da atividade com os W’s Boys, banda de que era vocalista). Talvez de forma involuntária, foi um borrão nas linhas de demarcação da música popular brasileira. Não por rigorosamente as patrulhar, ao jeito de companheiros de geração, como Chico Buarque, Paulinho da Viola ou Edu Lobo; muito menos por se deixar seduzir pelo seu exotismo, como fizeram Eumir Deodato, Marcos Valle ou Sérgio Mendes; ou, sequer, de acordo com a ação de Caetano, Gilberto Gil ou Jorge Ben Jor, por conspirar expô-las ao ridículo. De maneira singular, em vez de levar o Brasil ao mundo moderno – o que, logo ao segundo álbum, e precocemente, até fez – sugeria querer reconduzi-lo a qualquer coisa mais arcaica: quem sabe, a um mundo que era já brasileiro antes ainda de haver Brasil. Milton foi moldando a história artística central do seu país dando mostras de lhe ser absolutamente exterior.

“Uma Travessia”, o espetáculo que traz a Portugal no dia do seu septuagésimo primeiro aniversário, encerra a liturgia de quem avançou estremecendo pelos segredos da criação, transformando angústia em profecia, abrindo-se ao infinito mas jamais perdendo de vista o que só o trabalho alcança (em ‘Amor de Índio’ proclama: “Todo o amor é sagrado/ e o fruto do trabalho/ é mais que sagrado”). O correspondente DVD (o concerto está igualmente disponível em CD), em que participam Wagner Tiso (aos teclados em ‘Vera Cruz’, ‘Nos Bailes da Vida’, ‘Canções e Momentos’ e na sua ‘Coração de Estudante’) e Lô Borges (duetista em quatro temas e solista em três clássicos de sua pena: ‘Nuvem Cigana’, ‘O Trem Azul’ e ‘Um Girassol da Cor do seu Cabelo’), remete para outra efeméride: as quatro décadas volvidas desde “Clube da Esquina”, o mais gregário de entre todos os discos concetuais. Os seus discretos ideólogos (Ronaldo Bastos, Márcio Borges, Fernando Brant) são evocados pelo repertório, enquanto os seus mais visíveis obreiros (Beto Guedes, Toninho Horta, Luiz Alves, Robertinho Silva, Nelson Angelo, Tavito, Rubinho) são lembrados nos arranjos de um quinteto – Gastão Villeroy no baixo, Kiko Continentino ao piano, Widor Santiago nos sopros, Wilson Lopes à guitarra e Lincoln Cheib na bateria – elaborados a partir de matrizes que, de tão exatas, se diriam lavradas num cartório de Minas Gerais logo após a sua conceção.

Mas foi por atribuir sentido à existência dos que o ouviam que Milton se revelou eminentemente contemporâneo. O seu canto aproximava diferenças, dirigia-se ao público para imediatamente dele se distanciar, provava que a vida necessita de solidões mas também de quem aponte saídas. Seria importante que o diálogo com os coliseus de Lisboa e Porto não ocultasse este tempo em que tantos enfrentam o desespero de frente. E que se percebesse que quão mais o presente os escraviza mais Milton fala aos resistentes. Tratar-se-ia de um novo significado para um ato destinado a gente sequiosa por relações com o sublime. Em ‘Promessas do Sol’, pergunta: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?”. Respondendo, em ‘Cais’: “Para quem quer se soltar/ invento o cais/ invento o mar”. E visita o “porto de desesperança e lágrima” de ‘Lágrimas do Sul’ para, com ‘Maria, Maria’ afirmar que “é preciso ter força”, que “é preciso ter graça” e “gana sempre”, porque “quem traz na pele essa marca/ possui a estranha mania/ de ter fé na vida”. E a sua plateia ficaria a ter como certo aquilo que assegurou em ‘Clube da Esquina nº 2’, que “os sonhos não envelhecem”.

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