Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
30 de novembro de 2013
Clarke-Boland Sextett “Marcel Marceau Präsentiert: Swing Im Bahnhof” & Francy Boland “Playing With The Trio” (Rearward, 2013)
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“Orient-Occident II – Hommage a la Syrie” (Alia Vox, 2013)
Waed Bouhassoun (al, v), Hamam Khairy (perc, v), Oumeima
Khalil (v), Hespèrion XXI, Jordi Savall (d)
No terreno, não obstante a chegada
da “assistência letal” norte-americana aos “militantes moderados”, é a
linha-dura islamita que se moraliza. E, de acordo com o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, o número de mortes ascende a 120.000, enquanto um boletim das Nações Unidas prevê que se ultrapassem em breve os oito milhões de refugiados na zona. Na sombra, divisões mais profundas – entre blocos sunita e xiita ou entre
curdos e cristãos – somadas à tensão criada por décadas de Guerra Fria exacerbada
pela mais fatídica engenharia social e pela crescente insanidade que – numa estratégia
de dissuasão face à ameaça nuclear israelita – permitiu a proliferação de armas
químicas. Por tudo isto, de facto, não se sabe o que vai ser do regime de Assad,
ou se uma democracia ou uma teocracia o substituirá. Reagindo a tanta
intolerância e carnificina, Savall lembra agora milhares de anos de História, deixando
que a música renda a retórica. Tendo em “Jérusalem”, “Pro Pacem” ou “Balkan
Spirit” transformado o Hespèrion XXI numa ‘sociedade das nações’, e porque tem consciência
de que é mais fácil destruir sucessivas administrações parciais do que edificar
uma perene e universalmente justa no seu lugar, presta assim – num balsâmico e
ocasionalmente deslumbrante programa de “danças, orações, canções e lamentos”
mergulhado em “séculos de tragédia, injustiça e fanatismo” – um “tributo ao
povo sírio” com o objetivo de contrariar “esta amnésia que tanto nos
desumaniza”. O que daí resulta – de cantos árabes a melopeias pré-islâmicas, de
polifonia profana a melodias sefarditas, de ritmos do cristianismo primitivo a ecos
em catedrais bizantinas – evoca o epigrama de Meleagro de Gadara que, há mais de dois mil anos, dizia ser a Síria “um país/ que é o mundo inteiro”.
23 de novembro de 2013
Hailu Mergia “Shemonmuanaye” (Awesome Tapes from Africa, 2013)
Tomar-se-á “Shemonmuanaye” por uma
obra tão anacrónica na modernidade etíope quanto, por exemplo, “Lifespan”, de
Terry Riley, em 1975, o foi no minimalismo norte-americano. O que, pese embora
a sua inverosimilhança face a tudo o que se tem como certo, não quer dizer que se
deva disputar a sua autenticidade. Tratar-se-á, ao invés, de mais uma correção
aplicada à história da música por uma exceção ao cânone. Afinal, há algo de ilícito
nestas quiméricas gravações caseiras com que Hailu Mergia – em tempos teclista e
acordeonista na famosa Walias Band mas, em 1985, à data da edição desta
cassete, e após deserção, já uma celebridade menor no seio da diáspora constituída
no exílio – iludia a necessidade de se fazer acompanhar por instrumentistas. E
esse impulso – um utópico recurso para, quiçá inadvertidamente, alterar de
maneira substancial, e à distância, o dispositivo formal de que se socorriam
valetudinários conjuntos em Adis Abeba – dá mostras de servir uma doutrina em
tudo inversa àquela mais em voga na altura em que se produziam estes onze
temas. Ou seja, contrariamente à ideia postulada em “We Are the World”, Mergia
prometia aqui uma espécie de redenção à escala microscópica, dependente da
noção de que o mundo é feito de pequenos mundos. E por ter preferido a fantasia
– munido de sintetizador, piano elétrico e caixa de ritmos, e imbuído pelo espírito
do jazz – arriscou a transcendência nos rigorosamente vigiados quadrantes das
tradições tigrínia, amárica e oromo, assinando assim, presume-se, a sua
obra-prima. E apesar de só agora, que se vê reintroduzida na era digital, se compreender
o alcance dessa epifania, Mergia – hoje taxista na cidade de Washington – aí
está para relembrar que, mais do que reescrevê-la, se pode sempre tornar a
imaginar a narrativa do passado. Toca dia 5 de dezembro no Musicbox, em Lisboa.
Mostly Other People Do the Killing “Red Hot” (Hot Cup, 2013)
Um dos mais sugestivos álbuns de 2011
foi “Science of the Sea”, reedição da música criada, em 1979, pelo biólogo
marinho Jürgen Müller para servir de banda-sonora em filmes com expedições
subaquáticas. Numa diáfana tessitura tão sedante quão sujeita a espumosos
arpejos, dir-se-ia a mais poética representação do mar desde Debussy. Mas tratava-se
de uma efabulação, imputada, desde então, ao produtor contemporâneo Panabrite. O
seu ato de imaginação – mas, mais ainda, uma receção que indicia que os
melómanos preferem boas estórias a boa música – trazia à memória a frase com
que, em 1935, Fritz Kreisler, após assunção de que tinha sido ele, de facto, o
autor de peças atribuídas a Couperin ou Vivaldi, respondeu aos reclamantes:
“podem mudar o nome que o valor se mantém o mesmo”. Ou seja, substituiu uma
fabricação universal, reconhecida como autêntica, por outra particular, logo
tida como falsa. Mas o que estes testemunhos apócrifos provam é que sem eles
não se compreende totalmente o contexto histórico a que se referem, nem, muito
menos, aquele em que são gerados – além de possuírem semelhante importância
devocional à que se desenvolve na apreciação do dogma. Talvez por isso, inexcedíveis
em vaidade e descaramento, reincidam uns ampliados MOPDtK (adicione-se Brandon
Seabrook, Ron Stabinsky e David Taylor a Moppa Elliott, Kevin Shea, Jon
Irabagon e Peter Evans) na ‘arquivologia mágica’, reavivando aqui a obra dos
ficcionais Brimstone Corner Boys, cuja atividade escrutinam num livreto que
cruza lendas da Grande Depressão com relatos de combustão humana espontânea e evocações
das cidades-fantasma da Pensilvânia. O modelo – atente-se numa capa que
mimetiza a da antologia “Birth of the Hot” – é o dos Red Hot Peppers, de Jelly
Roll Morton, nivelados pelo rolo compressor de décadas de convulsões artísticas.
Perfeitamente voltaico.
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