Havia algo de irredutível em Max Gordon. E tinha olho para o
talento. Alguns músicos chegavam ao seu clube tão mal preparados quanto um tenista
que atingisse o court principal de um grande torneio tendo ensaiado mais os
tiques do que o serviço; esses, raramente voltavam. Num livro de memórias, obviamente
intitulado “Live at the Village Vanguard”, Max, ao jeito de uma mãe que à
conversa chama um filho independente, fala do estabelecimento de modo
introspetivo: “Fui eu que o dei à luz, que lhe incuti as minhas ideias, as
minhas esperanças e os meus sonhos. É o meu bebé, mas agora tem vida própria, e
é melhor que eu nunca me esqueça disso.” Entretanto, claro, para músicos
profissionais, clubes de jazz como o Village Vanguard (etapa incontornável na
panteologia do género graças a Sonny Rollins, Bill Evans ou John Coltrane)
deixaram de ser como pão para a boca, embora se mantenham elementos
indispensáveis na crónica urbana do nosso tempo. Nessa perspetiva, esta
gravação possui duas leituras: a primeira, francamente irónica, diz respeito à
estreia de Ribot, guitarrista com 60 anos feitos na semana passada, enquanto
cabeça de cartaz num espaço ainda encarado como fator de mercado; a segunda,
genuinamente capaz de mover à compaixão, o regresso de Henry Grimes, contrabaixista
neste trio em que Chad Taylor é baterista, a um palco que não pisava desde
1966, altura em que aí atuou – e gravou – com Albert Ayler. A poesia do gesto –
estar em simultâneo no passado e no presente através do mais oracular em Ayler,
Coltrane ou, por intermédio de um standard,
Louis Armstrong – não iludiu os intervenientes. Talvez por isso tenham tocado o
‘Ol’ Man River’.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
31 de maio de 2014
Vertù Contra Furore: Musical Languages in Late Medieval Italy, 1380-1420 (Arcana, 2014)
Mala Punica, Pedro
Memelsdorff (d)
Anacrónico por razões inconfundíveis com as da atual
conjuntura de alterações climáticas, há um verso num soneto de Petrarca – em “S'amor
non è, che dunque è quel ch'io sento?”, redução da retórica amorosa aos
contraditórios impulsos que do poeta se apoderam sem consentimento, absurdos, irresolúveis,
antitéticos – que dá ideia do espanto com que há vinte anos atrás se testemunhou
o alvor do grupo Mala Punica: “tremo em pleno verão e ardo no inverno”, lia-se
no trecento e, agora, sentia-se no
final do século XX perante “Ars Subtilis Ytalica: Polyphonie pseudo-Française
en Italie, 1380-1410”, uma pioneira exegese da italiana ars subtilior (a “arte
mais subtil”) realizada a partir de um manuscrito da Biblioteca Estense, em
Módena, recheado de insólitas criações de Bartholomeus de Bononia, Anthonello
de Caserta, Matteo da Perugia ou Antonio Zacara da Teramo.
E o que esse esforço paleográfico descobria não era, apenas, o prosseguimento
do modelo dominante do período (confronte-se o disco com “Ars Magis Subtiliter”, do Ensemble P.A.N.,
editado na mesma altura e consagrado, este, ao Códice de Chantilly), mas algo
que podia definir-se como a mais depurada e antiga ilusão de liberdade total
até então encontrada em música. Quando em 1995 e 1996 chegaram “D’Amor
Ragionando: Ballades du neo-Stilnovo en Italie, 1380-1415” e “En Attendant:
L'Art de la citation dans l'Italie des Visconti, 1380-1410”, adicionou-se à
equação o stilnovismo toscano, Landini
ou Ciconia, a tensão do Grande Cisma ou o madrigal heráldico da família
Visconti e, de certa forma, compôs-se um tríptico (em boa hora reunido em caixa)
que não é nada senão um ato de fé.
Etiquetas:
Anthonello de Caserta,
Antonio Zacara da Teramo,
Arcana,
Bartholomeus de Bononia,
Clássica,
Francesco Landini,
Mala Punica,
Matteo da Perugia,
Pedro Memelsdorff
Brahms: The Violin Sonatas (Decca, 2014)
Leonidas Kavakos
(vl), Yuja Wang (p)
Dir-se-ia que de modo a evitar as contínuas comparações
entre a maneira de Yuja Wang tocar e de se vestir (a ilação a tirar será a de que
há falta de decoro numa e noutra), a Decca, nas fotos desta edição, representa
a pianista em contexto informal, surpreendida de casta blusa básica preta em
meia manga e trivial calça de ganga escura, como quem insinua que traduz tal
gesto o que de menos calculado possui a ação da pequinesa – trata-se, afinal, de
uma estreia em repertório camerístico. E, levando à letra tal consideração, a
ideia que fica é que Wang não compreendeu um truísmo indispensável: o de que,
nestas três sonatas, a escrita para piano de Brahms não é forçosamente
pianística. Por outro lado, mostra algo tão perturbante quão adequado: uma
absoluta espontaneidade na sua execução, como se as notas tivessem elas mesmas
encontrado no teclado os seus lugares. Talvez seja um processo de aprendizagem
que se deve à naturalidade de Leonidas Kavakos neste idioma, pois não há
memória de uma dupla tão confortável com tudo o que aqui se passa. Sim, para
recordar uma mão-cheia de títulos de referência nos últimos 30 anos, Perlman e
Ashkenazy foram igualmente económicos mas comparativamente mais opulentos; Dumay
e João Pires mais sigilosos; Mullova e Anderszewski mais dominantes; Mintz e Golan
mais românticos; e Mutter e Orkis revelaram-se mais marcados pela vida. Kavakos
e Wang, pelo contrário, ainda que apenas sugiram, mais que concretizem, todo o
potencial que há em Brahms, parecem afirmar que não vêm alterar o destino às
peças mas que esperam que sejam as peças a mudar os seus destinos pessoais. E,
de momento, isso basta.
24 de maio de 2014
Billy Hart Quartet “One is the Other” (ECM, 2014)
Particularmente ecuménico, o título deste novo álbum do
quarteto de Billy Hart, Mark Turner, Ethan Iverson e Ben Street na ECM traz à
memória um livro de Élisabeth Badinter de meados dos anos 80: “L'Un est l’Autre”,
em que, a pretexto de se discutir igualdade de género, se concluía que,
enquanto espécie, trabalhamos excessivamente no sentido de impor as nossas
dissemelhanças. A referência vem de um tempo em que também no jazz se detetavam
resíduos antropológicos, mas é evidente que Hart o precede – ele, que é
daqueles que cosem umas às outras as folhas da história do jazz, possuindo
estágios fundamentais junto a Pharoah Sanders, Herbie Hancock, Stan Getz ou Charles
Lloyd (aliás, retire-se da prateleira, ao acaso, uma enciclopédia, e dá-se pelo
seu nome numas 100 páginas). Por isso, mais importante se torna esta designação
que contraria o mito de dominação cultural que se associa às formações com
líder. O reverso da medalha, já se sabe, é cair-se na mais paradoxal mesmidade,
coisa que se pressente nesta sessão e que a editora agrava quando, na capa, recorre
a uma fotografia de Jean-Guy Lathuilière tão aproximada às de Jan Kricke ou Gérald
Minkoff empregues noutros lançamentos do seu catálogo ou por reincidir no
estúdio de gravação de grande número dos seus discos de jazz, o que leva, por
exemplo, o saxofone de Turner a assemelhar-se aos de Lovano, Potter ou Lloyd
antes ainda de se parecer consigo mesmo. E, não chegando a ser insípida,
inexpressiva ou pouco inventiva, a verdade é que a ação dos músicos – em menos
originais do que o esperado – não sugere propriamente o inverso. Para que
serve, assim, tudo isto que os une?
Subscrever:
Mensagens (Atom)