31 de maio de 2014

Marc Ribot Trio “Live At the Village Vanguard” (Pi Recordings, 2014)



Havia algo de irredutível em Max Gordon. E tinha olho para o talento. Alguns músicos chegavam ao seu clube tão mal preparados quanto um tenista que atingisse o court principal de um grande torneio tendo ensaiado mais os tiques do que o serviço; esses, raramente voltavam. Num livro de memórias, obviamente intitulado “Live at the Village Vanguard”, Max, ao jeito de uma mãe que à conversa chama um filho independente, fala do estabelecimento de modo introspetivo: “Fui eu que o dei à luz, que lhe incuti as minhas ideias, as minhas esperanças e os meus sonhos. É o meu bebé, mas agora tem vida própria, e é melhor que eu nunca me esqueça disso.” Entretanto, claro, para músicos profissionais, clubes de jazz como o Village Vanguard (etapa incontornável na panteologia do género graças a Sonny Rollins, Bill Evans ou John Coltrane) deixaram de ser como pão para a boca, embora se mantenham elementos indispensáveis na crónica urbana do nosso tempo. Nessa perspetiva, esta gravação possui duas leituras: a primeira, francamente irónica, diz respeito à estreia de Ribot, guitarrista com 60 anos feitos na semana passada, enquanto cabeça de cartaz num espaço ainda encarado como fator de mercado; a segunda, genuinamente capaz de mover à compaixão, o regresso de Henry Grimes, contrabaixista neste trio em que Chad Taylor é baterista, a um palco que não pisava desde 1966, altura em que aí atuou – e gravou – com Albert Ayler. A poesia do gesto – estar em simultâneo no passado e no presente através do mais oracular em Ayler, Coltrane ou, por intermédio de um standard, Louis Armstrong – não iludiu os intervenientes. Talvez por isso tenham tocado o ‘Ol’ Man River’.

Vertù Contra Furore: Musical Languages in Late Medieval Italy, 1380-1420 (Arcana, 2014)




Mala Punica, Pedro Memelsdorff (d)


Anacrónico por razões inconfundíveis com as da atual conjuntura de alterações climáticas, há um verso num soneto de Petrarca – em “S'amor non è, che dunque è quel ch'io sento?”, redução da retórica amorosa aos contraditórios impulsos que do poeta se apoderam sem consentimento, absurdos, irresolúveis, antitéticos – que dá ideia do espanto com que há vinte anos atrás se testemunhou o alvor do grupo Mala Punica: “tremo em pleno verão e ardo no inverno”, lia-se no trecento e, agora, sentia-se no final do século XX perante “Ars Subtilis Ytalica: Polyphonie pseudo-Française en Italie, 1380-1410”, uma pioneira exegese da italiana ars subtilior (a “arte mais subtil”) realizada a partir de um manuscrito da Biblioteca Estense, em Módena, recheado de insólitas criações de Bartholomeus de Bononia, Anthonello de Caserta, Matteo da Perugia ou Antonio Zacara da Teramo. E o que esse esforço paleográfico descobria não era, apenas, o prosseguimento do modelo dominante do período (confronte-se o disco com “Ars Magis Subtiliter”, do Ensemble P.A.N., editado na mesma altura e consagrado, este, ao Códice de Chantilly), mas algo que podia definir-se como a mais depurada e antiga ilusão de liberdade total até então encontrada em música. Quando em 1995 e 1996 chegaram “D’Amor Ragionando: Ballades du neo-Stilnovo en Italie, 1380-1415” e “En Attendant: L'Art de la citation dans l'Italie des Visconti, 1380-1410”, adicionou-se à equação o stilnovismo toscano, Landini ou Ciconia, a tensão do Grande Cisma ou o madrigal heráldico da família Visconti e, de certa forma, compôs-se um tríptico (em boa hora reunido em caixa) que não é nada senão um ato de fé.

Brahms: The Violin Sonatas (Decca, 2014)




Leonidas Kavakos (vl), Yuja Wang (p)


Dir-se-ia que de modo a evitar as contínuas comparações entre a maneira de Yuja Wang tocar e de se vestir (a ilação a tirar será a de que há falta de decoro numa e noutra), a Decca, nas fotos desta edição, representa a pianista em contexto informal, surpreendida de casta blusa básica preta em meia manga e trivial calça de ganga escura, como quem insinua que traduz tal gesto o que de menos calculado possui a ação da pequinesa – trata-se, afinal, de uma estreia em repertório camerístico. E, levando à letra tal consideração, a ideia que fica é que Wang não compreendeu um truísmo indispensável: o de que, nestas três sonatas, a escrita para piano de Brahms não é forçosamente pianística. Por outro lado, mostra algo tão perturbante quão adequado: uma absoluta espontaneidade na sua execução, como se as notas tivessem elas mesmas encontrado no teclado os seus lugares. Talvez seja um processo de aprendizagem que se deve à naturalidade de Leonidas Kavakos neste idioma, pois não há memória de uma dupla tão confortável com tudo o que aqui se passa. Sim, para recordar uma mão-cheia de títulos de referência nos últimos 30 anos, Perlman e Ashkenazy foram igualmente económicos mas comparativamente mais opulentos; Dumay e João Pires mais sigilosos; Mullova e Anderszewski mais dominantes; Mintz e Golan mais românticos; e Mutter e Orkis revelaram-se mais marcados pela vida. Kavakos e Wang, pelo contrário, ainda que apenas sugiram, mais que concretizem, todo o potencial que há em Brahms, parecem afirmar que não vêm alterar o destino às peças mas que esperam que sejam as peças a mudar os seus destinos pessoais. E, de momento, isso basta.

24 de maio de 2014

Billy Hart Quartet “One is the Other” (ECM, 2014)



Particularmente ecuménico, o título deste novo álbum do quarteto de Billy Hart, Mark Turner, Ethan Iverson e Ben Street na ECM traz à memória um livro de Élisabeth Badinter de meados dos anos 80: “L'Un est l’Autre”, em que, a pretexto de se discutir igualdade de género, se concluía que, enquanto espécie, trabalhamos excessivamente no sentido de impor as nossas dissemelhanças. A referência vem de um tempo em que também no jazz se detetavam resíduos antropológicos, mas é evidente que Hart o precede – ele, que é daqueles que cosem umas às outras as folhas da história do jazz, possuindo estágios fundamentais junto a Pharoah Sanders, Herbie Hancock, Stan Getz ou Charles Lloyd (aliás, retire-se da prateleira, ao acaso, uma enciclopédia, e dá-se pelo seu nome numas 100 páginas). Por isso, mais importante se torna esta designação que contraria o mito de dominação cultural que se associa às formações com líder. O reverso da medalha, já se sabe, é cair-se na mais paradoxal mesmidade, coisa que se pressente nesta sessão e que a editora agrava quando, na capa, recorre a uma fotografia de Jean-Guy Lathuilière tão aproximada às de Jan Kricke ou Gérald Minkoff empregues noutros lançamentos do seu catálogo ou por reincidir no estúdio de gravação de grande número dos seus discos de jazz, o que leva, por exemplo, o saxofone de Turner a assemelhar-se aos de Lovano, Potter ou Lloyd antes ainda de se parecer consigo mesmo. E, não chegando a ser insípida, inexpressiva ou pouco inventiva, a verdade é que a ação dos músicos – em menos originais do que o esperado – não sugere propriamente o inverso. Para que serve, assim, tudo isto que os une?