Em detrimento de tudo o resto se atribui, na História, valor
ao anedótico. Será assim no caso deste par de “Te Deum”. Afinal, desempenharam
um papel junto daquele que se reputou como autor da mais elucidativa sinédoque
da governação: poderia o Luís XIV de “o Estado sou eu” ouvir “Louvamos-Te como
Deus” sem se refastelar numa orgia de hipócrita autoindulgência? Além de que, aqui,
por mais corrompidos pela repetição que estejam, peca por omissão quem não assinale
dois factos: primeiro, que a apresentação de 8 de janeiro de 1687 do “Te Deum”
de Jean-Baptiste Lully (1632-1687) ficou marcada pela iminentemente fatal
bastonada que, no ato de entusiasticamente o dirigir, o compositor deu no seu
próprio pé (a batuta só pegaria no início do século XIX); segundo, que o
prelúdio do “Te Deum” de Marc-Antoine Charpentier (1643-1704), empregue pela União Europeia de Radiodifusão no arranque das suas transmissões, viria a conceder solenidade,
século XX adentro, até aos mais levianos conteúdos televisivos (ex.: Festival
Eurovisão da Canção). A referência não é inteiramente frívola porque afeta a
maneira de interpretar as obras: os vocalistas parecem profundamente infelizes
a cantar um e quase eufóricos a cantar outro. Dumestre e o Poème Harmonique – e
um soberbo naipe de cantores cuja capacidade de melodizar é ocasionalmente
submergida pelo ritmo – dão ares de querer corrigir assimetrias mas revelam mais
umas, e a enormidade do seu encómio é tocante de tão paradoxalmente
hiperbólica: como se estes “Te Deum” não representassem, também, a substituição
de uma cultura musical (a de Lully) por outra (a de Charpentier).
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