Ao décimo ano de carreira, e após quatro álbuns de
estúdio, Maria Rita dedicou-se por fim a um repertório associado à voz da sua
mãe, a mercurial e titânica Elis Regina, numa série de espetáculos em que
assinalou o trigésimo aniversário da sua morte. A iniciativa surge agora transferida
para duplo CD e DVD – que serviram de mote a esta conversa – e em finais de
junho chegará aos palcos de Lisboa e Porto.
Independentemente da salvaguarda da sua própria
especificidade artística, e dada a sua privilegiada posição, parece-me
importante começar por tentar compreender duas coisas: primeiro, o que de mais
significativo encontra no legado da sua mãe? Segundo, o que significa para si
poder, neste momento, reconduzi-lo a diferentes gerações?
Sabe que tive
uma filha agora em dezembro e tenho dedicado 24 horas do meu dia aos cuidados
com a Alice. E faço essa introdução porque considero que esse fato é importante
na resposta à sua pergunta. Minha mãe foi uma mulher excecional. Em todos os
sentidos: boa pessoa, boa profissional, uma cantora sem igual e,
principalmente, uma boa mãe. Tive pouco tempo de convívio pessoal com ela, mas
tempo suficiente para que ela deixasse registrado em mim o compromisso com o
acerto, com a correção no trabalho e no trato pessoal e, principalmente, um
amor incondicional à música. Quero poder legar à minha filha Alice e ao meu
filho Antônio essa mesma herança. E esse projeto, “Redescobrir”, ao qual me
dediquei por mais de um ano, teve por objetivo permitir que as novas gerações
pudessem conhecer o legado de Elis Regina: a cantora, o ser humano e a cidadã.
Muitas iniciativas editoriais assinalaram os 30 anos da
morte de Elis mas, dentro dos parâmetros daquele que é sempre um trabalho sobre
a memória, uma ação como a sua integra invariavelmente valores contemporâneos.
Em termos gerais, o que mais a motivou no processo?
Eu fiquei
meses me dedicando a ouvir os discos gravados pela minha mãe, para poder tirar
do universo de sua obra mais de 60 canções que resultaram nas músicas que estão
no repertório do show, do CD e DVD.
Escolha difícil – Elis tinha um compromisso absoluto e inegociável com a
qualidade das canções e dos arranjos nas inúmeras gravações que fez. Procurei
manter os arranjos originais em respeito à sua obra - especialmente nos grandes
clássicos - buscando, como você mesmo aponta, algumas informações e sonoridades
atuais mas com o cuidado de não interferir no desenho artístico único que ela
registrou em todo o seu trabalho e que tem como uma de suas características
mais importantes, decorridos 30 anos de sua morte, a contemporaneidade. Não por
acaso, Nelson Motta, um dos mais importantes e completos intelectuais
brasileiros e amigo pessoal de minha mãe, declarou recentemente que Elis está
cantando cada vez melhor.
Há uma carga simbólica acrescida quando a Maria Rita
canta na primeira pessoa do singular, sendo que, neste caso, partilha-a não só
com diversos autores mas também com a sua mãe. Presumo que tenha passado por
momentos de alguma catarse. Em algum instante sentiu que esse ‘eu’ narrativo ganhava
uma inesperada dimensão para si enquanto cantora, mulher e filha?
Essa
pergunta é em si mesmo uma catarse! Cantei o que tive vontade e o que o meu
coração disse. Elis gostaria de me ter ouvido cantar [com tanta] emoção à flor
da pele. E nesse show sou muito mais
narradora do que intérprete, sim – sou mais filha do que cantora, inclusivamente.
No show, no entanto, há uma música
especial para mim: é a ‘Essa Mulher’, da Joyce Moreno, que foi sempre uma das
canções que mais gostei de ouvir minha mãe cantar. Poder cantá-la agora me
trouxe uma cumplicidade feminina com minha mãe que a vida não nos deu a
oportunidade de ter. Magia que só a música pode fazer.
Desde que a Maria Rita editou o seu primeiro disco que no
público cresceu o desejo de a ouvir confrontar o paradigma interpretativo da
sua mãe. No entanto, não me lembro de, com a mesma veemência, se insistir para
Bebel cantar João, Mart’nália cantar Martinho, Clara cantar Joyce, etc. Julga
que isso se dava mais como consequência do sucesso obtido pela sua mãe e o seu
prematuro desaparecimento, pela afinidade tímbrica das suas vozes ou porque
existe de facto um grande desejo de redenção da figura de Elis?
Pois
é, acho que nenhum dos meus amigos e colegas que você cita experimentou o mesmo
nível de cobrança que tive quando comecei a cantar. E olha que foi preciso
muita coragem para encarar a realidade de que a música era minha vida e o palco
o meu lugar. Mas coragem foi uma das boas coisas que eu herdei dela. Minha mãe
é um exemplo não só para mim, mas para toda a sua geração e, espero, com esse show, para as novas gerações também. Há
ainda a questão do timbre que é mais uma herança da qual me orgulho muito. Mas essa
curiosidade exacerbada é exatamente porque tudo em torno de Elis foi sempre
muito emocional – menos por sua história de vida e mais pela maneira excecional
com que ela se dedicou à música e tocou o coração das pessoas. Quando me resolvi
dedicar à música optei por construir minha história pessoal e musical de forma
independente, criando uma identidade. E agora, decorridos 10 anos de minha
(curta) história já escrita, mais segura de mim, achei que esse era o momento
de prestar a ela essa homenagem. E estou muito feliz com isso.
Fico
muito feliz que isso tenha ficado tão claro para você. Foi uma escolha pessoal,
emocional e intransferível. Nada cerebral. E não há nenhuma contradição porque
não há nenhum compromisso com nenhum processo. Apenas o desejo da homenagem e a
escolha emocional das canções. E um profundo respeito e admiração pelo que ela
fez e pelo público, tanto o meu quanto o dela, que tem uma memória latente e
viva de Elis, seja por experiência própria, seja através do inconsciente
coletivo. Somos, sim, eu e a banda, como um veículo para trazer para os dias de
hoje o seu legado, com respeito mas também com paixão e uma honesta entrega.
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