Fatema Mernissi, Edgar Morin, Raimon Panikkar, Antoni Tàpies, Hespèrion
XXI, La Capella Reial de Catalunya, Jordi Savall (d)
Remonta à fundação da Alia Vox, há
15 anos, o arranque de um processo que reformulou o papel desempenhado pelo
catalão Jordi Savall no panorama artístico internacional. Paralelamente à
prossecução de um interesse espeleológico pelos abismos do repertório das eras
medieval, renascentista e barroca, o gambista, nas funções de investigador,
intérprete, diretor e editor, reinventou-se enquanto astuto poeta da
hermenêutica e instigante agente do multiculturalismo, para o qual não há manuscrito
demasiadamente hermético ou tradição excessivamente remota. Não admira,
portanto, que ao coligir os materiais de “Pro Pacem” – soberano e testamental enunciado
– tenha aberto a arca familiar e recuperado exemplares parcelas de um maná
retalhado pelo seu catálogo em títulos como “Diáspora Sefardí”, “Orient-Occident”,
“La Route de l'Orient”, “Jérusalem” ou “Istanbul”. E será um testemunho às suas
criteriosas capacidades que, aqui – numa milenar navegação que aporta por
longínquas orações corânicas, lamentos sefarditas, cantos gregoriano, bizantino
e hebraico ou um vilancete luso-goês dedicado à Nossa Senhora do Mundo, a par da
polifonia de Lassus e Prés ou de peças espirituais de Tye, Purcell e, já em
2004, Pärt –, promova um extático manifesto que ilude a anestesia litúrgica e promulga
a música como uma propedêutica da paz. Mais do que desbravar fronteiras
territoriais e temporais ou categorias estéticas e técnicas, Savall restabelece
o primado da emoção e torna tangível a utopia.
A acompanhar tão edificante ação vem
um livro de proporções bíblicas e intenções pedagógicas, com 1191 páginas essencialmente
consagradas a quatro ensaios, uma introdução do próprio Savall, um alerta de
António Guterres face ao drama da migração forçada e dados estatísticos sobre
despesa militar, armamento nuclear e guerra – reproduzidos em oito línguas. Savall
fala-nos de “ignorância, ódio e egoísmo”, cita a iniquidade pressagiada por
Stiglitz e o “medo como legitimação do poder” identificado por Judt. Recolhidos
nas “Memórias”, seguem-se depoimentos de Antoni Tàpies sobre arte e sociedade. Do
filósofo Edgar Morin inclui-se a reflexão “A Educação do Futuro”, publicada em
1999 pela UNESCO, incisiva na análise da natureza humana, na criação de
encadeados epistemológicos – “cérebro/mente/cultura” ou “razão/emoção/impulso”
– e no diagnóstico de uma “regressão democrática que, sob tecnocráticos
pretextos, afasta os cidadãos de cruciais decisões políticas”. De Raimon
Pannikar surge, num escrito de 2006, um holístico apelo ao diálogo
inter-religioso. Por fim, expande-se a alocução realizada pela académica
marroquina Fatema Mernissi na cerimónia de entrega do Prémio Príncipe das
Astúrias de 2003, uma alegórica meditação acerca do modelo de globalização
árabe. Pairando, a mesma sombra elementar: “como desarmar as nossas culturas?”.
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