23 de março de 2013

Wayne Shorter Quartet “Without a Net” (Blue Note, 2013)



Começa a navegar por mares conhecidos – num férreo ostinato conduzido pela mão esquerda do pianista Danilo Pérez que, para ouvintes cúmplices, espelha o exercício exclusivamente dextro de Herbie Hancock na precedente gravação deste ‘Orbits’, em 1967 incluída em “Miles Smiles” – mas nem por isso ilude os interesses da aguda inteligência que lhe guia o caminho. De facto, Shorter – esteio do ‘segundo grande quinteto’ de Miles Davis e paradigmático ideólogo da função multiculturalista do jazz desde a fundação dos Weather Report em 1971 – opera num raro quadro cognitivo que, combinando distinta intelectualidade com um atraente abstracionismo, coloca, com frequência, ao serviço de uma caprichosa imaginação. E “Without a Net”, o seu primeiro álbum em oito anos, novamente ao vivo, e no qual reincidem intérpretes que até a sonhar devem realizar as fantasias uns dos outros – Pérez, John Patitucci e Brian Blade –, só podia resultar da ação daquele que, cruzando a ductilidade própria da memória com ágeis raciocínios e os mais espirituosos juízos, jamais teve de desperdiçar energias a disfarçar falta de originalidade. Quase octogenário, decano do hard bop, experto fusionista, titular de uma espantosa inconguência – a do grífico improvisador – e de regresso à casa, a Blue Note, em que – não se fazendo por menos – gravou duas mãos cheias de obras-primas, Shorter permanece no topo das suas divinatórias faculdades, e o seu oblongado, adunco e declamativo saxofone soprano insiste em cartografar os mais sinuosos e inóspitos terrenos. E nunca como em ‘Pegasus’, tema de cerca de vinte minutos em que se acopla ao grupo o quinteto de sopros Imani Winds, capaz de inaugurar um abismal conceito: a peça de câmara, de fluxos minimalistas, que se supõe conseguir exaltar mesmo as mais tumultuosas liturgias das denominações cristãs afro-americanas.

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