Começa a navegar por mares
conhecidos – num férreo ostinato conduzido
pela mão esquerda do pianista Danilo Pérez que, para ouvintes cúmplices, espelha
o exercício exclusivamente dextro de Herbie Hancock na precedente gravação
deste ‘Orbits’, em 1967 incluída em “Miles Smiles” – mas nem por isso ilude os
interesses da aguda inteligência que lhe guia o caminho. De facto, Shorter – esteio
do ‘segundo grande quinteto’ de Miles Davis e paradigmático ideólogo da função
multiculturalista do jazz desde a fundação dos Weather Report em 1971 – opera num
raro quadro cognitivo que, combinando distinta intelectualidade com um atraente
abstracionismo, coloca, com frequência, ao serviço de uma caprichosa
imaginação. E “Without a Net”, o seu primeiro álbum em oito anos, novamente ao
vivo, e no qual reincidem intérpretes que até a sonhar devem realizar as
fantasias uns dos outros – Pérez, John Patitucci e Brian Blade –, só podia
resultar da ação daquele que, cruzando a ductilidade própria da memória com
ágeis raciocínios e os mais espirituosos juízos, jamais teve de desperdiçar
energias a disfarçar falta de originalidade. Quase octogenário, decano do hard
bop, experto fusionista, titular de uma espantosa inconguência – a do grífico
improvisador – e de regresso à casa, a Blue Note, em que – não se fazendo por
menos – gravou duas mãos cheias de obras-primas, Shorter permanece no topo das
suas divinatórias faculdades, e o seu oblongado, adunco e declamativo saxofone
soprano insiste em cartografar os mais sinuosos e inóspitos terrenos. E nunca
como em ‘Pegasus’, tema de cerca de vinte minutos em que se acopla ao grupo o
quinteto de sopros Imani Winds, capaz de inaugurar um abismal conceito: a peça de
câmara, de fluxos minimalistas, que se supõe conseguir exaltar mesmo as mais
tumultuosas liturgias das denominações cristãs afro-americanas.
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