Max Barros
O recital inicia-se com “Dança Negra”, “Dança Brasileira” e
“Dança Selvagem”, espécie de arcada supraciliar numa fisionomia folclorista que
encabeçava o corpo nacionalista arquetipicamente desenhado por Mário de Andrade
em plena ‘Era Vargas’. Mas em meia dúzia de minutos já a ação se instala no
âmago de uma produção mais exogâmica, pese embora a aparente escravidão
conceptual: foi, de facto, através dos 50 “Ponteios”, escritos entre 1931 e
1959, que Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), compositor paulista que passou
grande parte da vida e da posteridade a responder por uma bacoca “Carta aberta
aos músicos e críticos do Brasil”, irrefletidamente redigida em 1950, circum-navegou
os arriscados redemoinhos da teoria musical de meados do século XX. Max Barros,
concertista com provas dadas na matéria, e cujo virtuosismo é inteligentemente
subordinado à invenção de cada peça, revela-se um notável descodificador de uma
cinética mais ontológica do que irónica – com indicações de tempo como ‘desconsolado’,
‘com profunda saudade’, ‘angustioso’ ou ‘dengoso, mas sem pressa’ – e articula
exemplarmente frases de estrutura irregular, num discurso polifónico marcado
por elipses e elisões que ocultam um caráter monotemático. Absorvendo a
qualidade intimista da modinha e da toada, o ciclo deriva do ‘pontear’, a
preambular verificação da afinação feita por um violonista antes de tocar, e,
nessa perspetiva, é um regionalista e aforístico concentrado de contrastes,
algures entre os “Prelúdios” de Chopin e os de Shostakovitch, com deslumbrantes
linhas melódicas sobre ostinati,
fluxos e refluxos de acordes espelhados, súbitas alterações de dinâmica, atmosférico
cromatismo e dramática ambivalência tonal. A par das “Cirandas” de Villa-Lobos
e dos “Tangos” de Ernesto Nazareth, porventura o ápice do repertório solístico
brasileiro para piano.
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