23 de março de 2013

Entrevista a Jon Hassell



[Jon Hassell em concerto em Lisboa, no Teatro Maria Matos, terça-feira, 26 de março]
Ao longo de um ano e meio, em sessões realizadas entre 1949 e 1950, Gil Evans, confirmando uma disposição coralista e colorista nos seus arranjos, agremiou, em redor de Miles Davis, polifónicos e matizados octetos que incluíam catedráticos da banda de Claude Thornhill – como Lee Konitz, Gerry Mulligan ou Bill Barber – e primorosos artífices da tridimensionalidade – John Lewis, Gunther Schuller, J. J. Johnson – para, e assim consagrou a narrativa desse tempo, duchar com água fria o ebuliente bebop e abrilhantar as qualidades harmónicas e tonais da portátil formação de jazz. Em 1957, após inócuas emissões em diversos registos, e no instante em que Evans e Miles se reencontravam no cromático e sinfónico “Miles Ahead”, organizou-se por fim, e de forma francamente memorável, tão elegantes e furtivos ensaios na compilação “Birth of the Cool” para, então, nos cinco anos que se seguiram à momentosa edição, em virtude da enxurrada de títulos que Prestige e Columbia lançavam no mercado – de “Workin’” a “Milestones” ou de “Steamin’” a “Kind of Blue” –, orquestrador e solista, em concomitante perfilhação das mais variadas tendências, aprofundarem em “Porgy and Bess”, “Sketches of Spain” e “Quiet Nights” o que, hoje, evocando um escrito de Paul Klee dos anos vinte, Jon Hassell define como “equilíbrio assimétrico”, ou seja, o ato de “achar o balanço certo entre uma vasta área de tons pálidos e uma pequena célula de cor forte”, no qual, prossegue, “imediatamente pensei quando, em agosto do ano passado, o festival de jazz de Roccella, na Calábria, me sugeriu homenagear Evans”.
Claro que, para quem soube “regressar ciclicamente à pivotante interrogação: mas do que é que eu efetivamente gosto?”, esse tributo, apresentado há seis meses enquanto “Sketches of the Mediterranean: Celebrating Gil Evans”, com a sua especificidade temática, geográfica e honorífica, aproximava-se já de “uma tirania autoimposta de que tinha de me libertar”. Hassell, como Evans – que logo entre 1960 e 1961 confundiu expectativas de coesão com o díptico “Out of the Cool” e “Into the Hot” – sempre reiterou a híbrida e luxuriantemente expressiva dimensão de um idioma que Miles Davis havia conduzido até esotéricas e sensuais tangentes e, no seu críptico retiro em meados dos anos 70, deixado às portas do paraíso… ou, conforme a perspetiva, do inferno. “Nunca olhei para isso nesses termos”, diz-nos, “no facto de estar a expandir o vocabulário do trompete quando Miles se recluiu; mas é verdade que tudo começa pela imitação e, com sorte, ouvindo o que dizem os sentidos, daí se poderá formar a individualidade”. De outra coisa, aliás, não tratou um percurso, de cerca de 35 anos (contando discos em nome próprio), frequentemente resumido a uma colusão, isto é, a uma dicotómica exposição de conceitos que em qualquer instância passaria por retórica mas que, no seu caso, lhe garantiu proveito epocal: primitivo e futurista, norte e sul, ocidente e oriente, físico e espiritual, global e local, sintético e orgânico, analítico e erótico, real e ficcional, originam um bipolar circuito de princípios a que aderiu, incontroversamente, na célebre tese holística de “Fourth World Vol. 1: Possible Musics”, o álbum de 1980 através do qual, depois de John Cage ou João Gilberto, do silêncio forjou um novo molde para a refundação do mundo.
Desde então”, reflete, “tem sido problemático navegar entre categorias que a internet tornou ainda mais inflexíveis. Odeio fixar as coisas, de colocar abstrações antes da realidade de cada um”, conclui, revelando algum desconforto com a ilusão de simultaneidade e acessibilidade instantânea que a era digital concede a um exército de arquivistas autodidatas. Noção que apenas na superfície contraria o que há três décadas escreveu no encarte de “Aka-Darbari-Java”: “a possibilidade de enquadrarmos numa mesma obra os sons concretos de músicas [sic] de vários períodos e proveniências marca um momento único na história”. Porque a questão é distinta, esclarece: “nem tudo é positivo neste enorme bem coletivo de que somos depositários. A minha ideia de prazer” – e redigiu-a num texto a que chamou “Acerca de Lisboa” – “implica a submissão a um universo sonoro metalinguístico que, de maneira caleidoscópica e prismática, refrate o que nos entusiasme, trate-se de Scriabin ou Marvin Gaye, Ravel ou Gil Evans, Couperin ou João Gilberto, polifonias de pigmeus ou gamelão indonésio. Se a experiência individual estiver sujeita às necessidades de rentabilização do Grande Complexo Industrial da Música, permanecerá monocromática e fundamentalista”. Esta visão – inextricável, inquisitiva e intoxicante – em que envolveu sensorialmente um número incomum de símbolos, ficará, no seu modo mais estilizado, evasivo e anacrónico, como uma fabulosa e ritualizada construção cultural, de transversal influência e significado, embora aparentando uma eremítica conceção. “A solidão não foi uma escolha, acredite. Ter-me-ia vendido com todo o gosto, se a ocasião se proporcionasse. Mas possuo a vantagem de poder ser descoberto aos poucos… e de nada me prender” – modalidade que, no fundo, não surpreende vinda daquele que, na formulação de Dali, por mais de uma vez relembrou a importância da “independência da imaginação”.

Sem comentários:

Enviar um comentário