[Jon Hassell em concerto em Lisboa, no Teatro Maria Matos, terça-feira, 26 de março]
Ao longo de um ano e meio, em
sessões realizadas entre 1949 e 1950, Gil Evans, confirmando uma disposição coralista
e colorista nos seus arranjos, agremiou, em redor de Miles Davis, polifónicos e
matizados octetos que incluíam catedráticos da banda de Claude Thornhill – como
Lee Konitz, Gerry Mulligan ou Bill Barber – e primorosos artífices da
tridimensionalidade – John Lewis, Gunther Schuller, J. J. Johnson – para, e assim
consagrou a narrativa desse tempo, duchar com água fria o ebuliente bebop e abrilhantar
as qualidades harmónicas e tonais da portátil formação de jazz. Em 1957, após
inócuas emissões em diversos registos, e no instante em que Evans e Miles se
reencontravam no cromático e sinfónico “Miles Ahead”, organizou-se por fim, e
de forma francamente memorável, tão elegantes e furtivos ensaios na compilação
“Birth of the Cool” para, então, nos cinco anos que se seguiram à momentosa
edição, em virtude da enxurrada de títulos que Prestige e Columbia lançavam no
mercado – de “Workin’” a “Milestones” ou de “Steamin’” a “Kind of Blue” –, orquestrador
e solista, em concomitante perfilhação das mais variadas tendências, aprofundarem
em “Porgy and Bess”, “Sketches of Spain” e “Quiet Nights” o que, hoje, evocando
um escrito de Paul Klee dos anos vinte, Jon Hassell define como “equilíbrio
assimétrico”, ou seja, o ato de “achar o balanço certo entre uma vasta área de
tons pálidos e uma pequena célula de cor forte”, no qual, prossegue, “imediatamente
pensei quando, em agosto do ano passado, o festival de jazz de Roccella, na
Calábria, me sugeriu homenagear Evans”.
Claro que, para quem soube “regressar
ciclicamente à pivotante interrogação: mas do que é que eu efetivamente gosto?”,
esse tributo, apresentado há seis meses enquanto “Sketches of the
Mediterranean: Celebrating Gil Evans”, com a sua especificidade temática, geográfica
e honorífica, aproximava-se já de “uma tirania autoimposta de que tinha de me
libertar”. Hassell, como Evans – que logo entre 1960 e 1961 confundiu
expectativas de coesão com o díptico “Out of the Cool” e “Into the Hot” – sempre
reiterou a híbrida e luxuriantemente expressiva dimensão de um idioma que Miles
Davis havia conduzido até esotéricas e sensuais tangentes e, no seu críptico
retiro em meados dos anos 70, deixado às portas do paraíso… ou, conforme a
perspetiva, do inferno. “Nunca olhei para isso nesses termos”, diz-nos, “no
facto de estar a expandir o vocabulário do trompete quando Miles se recluiu;
mas é verdade que tudo começa pela imitação e, com sorte, ouvindo o que dizem
os sentidos, daí se poderá formar a individualidade”. De outra coisa, aliás,
não tratou um percurso, de cerca de 35 anos (contando discos em nome próprio),
frequentemente resumido a uma colusão, isto é, a uma dicotómica exposição de conceitos
que em qualquer instância passaria por retórica mas que, no seu caso, lhe
garantiu proveito epocal: primitivo e futurista, norte e sul, ocidente e
oriente, físico e espiritual, global e local, sintético e orgânico, analítico e
erótico, real e ficcional, originam um bipolar circuito de princípios a que
aderiu, incontroversamente, na célebre tese holística de “Fourth World Vol. 1:
Possible Musics”, o álbum de 1980 através do qual, depois de John Cage ou João
Gilberto, do silêncio forjou um novo molde para a refundação do mundo.
“Desde então”, reflete, “tem sido problemático navegar entre categorias que
a internet tornou ainda mais inflexíveis.
Odeio fixar as coisas, de colocar abstrações antes da realidade de cada um”,
conclui, revelando algum desconforto com a ilusão de simultaneidade e
acessibilidade instantânea que a era digital concede a um exército de
arquivistas autodidatas. Noção que apenas na superfície contraria o que há três
décadas escreveu no encarte de “Aka-Darbari-Java”: “a possibilidade de
enquadrarmos numa mesma obra os sons concretos de músicas [sic] de vários
períodos e proveniências marca um momento único na história”. Porque a questão
é distinta, esclarece: “nem tudo é positivo neste enorme bem coletivo de que
somos depositários. A minha ideia de prazer” – e redigiu-a num texto a que chamou
“Acerca de Lisboa” – “implica a submissão a um universo sonoro metalinguístico
que, de maneira caleidoscópica e prismática, refrate o que nos entusiasme, trate-se
de Scriabin ou Marvin Gaye, Ravel ou Gil Evans, Couperin ou João Gilberto,
polifonias de pigmeus ou gamelão indonésio. Se a experiência individual estiver
sujeita às necessidades de rentabilização do Grande Complexo Industrial da
Música, permanecerá monocromática e fundamentalista”. Esta visão – inextricável,
inquisitiva e intoxicante – em que envolveu sensorialmente um número incomum de
símbolos, ficará, no seu modo mais estilizado, evasivo e anacrónico, como uma
fabulosa e ritualizada construção cultural, de transversal influência e
significado, embora aparentando uma eremítica conceção. “A solidão não foi uma
escolha, acredite. Ter-me-ia vendido com todo o gosto, se a ocasião se
proporcionasse. Mas possuo a vantagem de poder ser descoberto aos poucos… e de
nada me prender” – modalidade que, no fundo, não surpreende vinda daquele que,
na formulação de Dali, por mais de uma vez relembrou a importância da “independência
da imaginação”.
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