31 de janeiro de 2009

Entrevista a Mallu Magalhães

Estamos no elevador que nos conduzirá ao décimo andar do Edifício Marconi – Mallu Magalhães viajou a Portugal a convite da TMN – e a câmara que a cantora traz a tiracolo capta a atenção de Luiz Carvalho, fotógrafo do EXPRESSO: é uma soviética Zenit, com filtro imundo e mais do dobro da idade de Mallu. “Não limpa”, exclama, “coloco mel ou azeite na lente, salpico de pimenta e produzo uns efeitos lindos”. É próprio da adolescência viver-se com um pé no passado e outro no futuro, e é assim a seu lado: tudo parece familiar e desconhecido. E o episódio sugere que o desejo de transformar o mundo é maior que o de simplesmente o possuir. Também a sua música ignora o agora para se agarrar ao sempre.
Mallu tem 16 anos. Não se recorda da primeira canção, mas terá coincidido com o começo das aulas de violão, aos 11. “Eram umas coisas que fazia e depois mostrava aos meus pais. A minha mãe só chorava”. Com o passar dos anos vieram os discos: “Primeiro Elvis, depois Cash e a seguir Dylan”, esclarece como quem anuncia um programa. Pelo décimo quinto aniversário pediu dinheiro em vez de prendas – queria gravar. E a fechar 2007 colocou o resultado no MySpace. Multiplicaram-se contactos até se atingir o milhão de visitas (entretanto ultrapassaram-se os três). Geraram-se também paradoxais descobertas: MTV e Rolling Stone brasileiras, Serginho Groisman ou Jô Soares foram-na apresentando “em primeira mão” como “fenómeno” e “revelação” no momento em que se pressentia já uma popularidade à escala nacional. “Foi tudo acontecendo aos poucos”, recorda, “mas quando começou a ganhar proporções mais sérias vi que me poderia sustentar física e intelectualmente, e adquirir liberdade e autonomia de pensamento. É um ciclo”. Não deixará de ser um sinal dos tempos que os seus temas tenham sido distribuídos em telemóveis antes ainda de se fixarem em disco. “Eu acho importante que o maior número de pessoas os ouça, mas isso é complementar”, esclarece. Aliás, protege-se da ligação corporativa e logo a abrir o álbum, em ‘You Know You’ve Got’, lemos no imperativo: “Don’t wear fancy brands”. Só ela, urbaníssima paulista, saberá o absurdo de nesta viagem se ver definida pelo patrocinador como a intérprete que “por graça, os cariocas apelidam de ‘Garota de Ipanema’”.
A sua contínua exposição mediática ao longo de 2008 dependeu de equívocos, a começar pela questão da idade. “Foi útil para o negócio explodir, mas é burrice. Vivemos obcecados com essa ideia de passagem para o mundo adulto. Mas na arte é completamente idiota nomear alguém de criança, adulto ou adolescente – cada um tem seu tempo. Até o negócio da educação é absurdo! Em vez de aprendermos com o professor José Pacheco, adoptando uma pedagogia adaptada à diversidade dos alunos como na Escola da Ponte, seguimos um currículo horrível! Como eu, mais gente vai surgir assim cedo como reacção a isso”. A referência à escola da Vila das Aves reflecte um desejo de liberdade com plena equivalência na forma como escreve, quase sempre em inglês: “Essa escolha não foi uma contingência mas uma libertação. Com a música surgem milhares de fonemas, e a minha intuição fez-me gerir esse espaço em inglês. No segundo disco, que já está pronto, partilho totalmente os idiomas”. Na sua estreia há apenas dois poemas em português. Um deles, ‘O Preço da Flor’, revisita o ideário tropicalista com palavras como “lote”, “defeito” e “fabricação” em cerco apertado aos primeiros LPs de Tom Zé, Caetano ou Gal, mas mais colado ainda aos Mutantes. E não adiantará procurar outro estilo que não o country para definir muitos dos arranjos e atmosferas pelas quais vai gatinhando. Nessa perspectiva, no rock brasileiro, não ignorará a figura de Raul Seixas, que em ‘Cowboy Fora da Lei’ terminava no verso “Ficar na história é pra vocês”. “Adoro essa frase”, responde, “eu vou existindo. O que as pessoas fazem com isso é com elas”. ‘Tchubaruba’ soa ao que os Belle and Sebastian, que adora, andam há dez anos a tentar fazer. Muitas das canções contêm células conscientemente colocadas para desenvolver diálogos com Beatles (em ‘Her Day Will Come’), Johnny Cash (em ‘Don’t You Look Back’) ou, fundamentalmente, Bob Dylan (na frase “That's my blood on the tracks” de ‘Dry Freezing Tongue’ ou nas nasaladas sílabas a achatar vogais de ‘Town of Rock’n’Roll’). Os elementos biográficos desenvolvem uma complexa temática amorosa na qual salvaguarda a sua independência: “Sou completamente adepta da minha própria dignidade. Honrar a minha humanidade é seguir um caminho próprio”. Mas é no território partilhado por menina e mulher – e em ‘Sualk’ ou ‘Noil’ aproxima-se de Cat Power – que reside a holística dimensão que, noutros tempos, fez subir aos palcos também com 16 anos Dolores Duran, Elizete Cardoso, Elis Regina ou Rita Lee. 

Entretanto gravou um dueto com Marcelo Camelo e há dois meses que namoram. Em sectores da sociedade brasileira a notícia virou virose, mas parece ter como única resposta possível a inquietação: “Quem diz quando é que a gente vai adquirir a sabedoria? Quando é que a gente vai poder viver?”.