28 de novembro de 2009

Buika y Chucho "El Último Trago"

São vozes que choram, clamam, se esganam e só depois cantam. E duas mulheres que cultivam uma ambígua identidade sexual. Por isso terá o seu quê de calculismo produzir o encontro de Buika com repertório associado a Chavela Vargas. E a primeira coisa que se confirma é a grandeza de um registo tão à vontade na tradição imortalizada por La Niña de los Peines quanto noutro qualquer. Porque se nas gargantas erradas o flamenco é pouco mais que uma doença de vogais, na de Buika é tão natural quanto o primeiro grito. E servirá para revolver as entranhas destas rancheras, ora vexadas valsas, ora pútridas polcas, ora brumosos boleros, até que as canções de Álvaro Carrillo (‘El Andariego’), Agustín Lara (‘Se Me Hizo Fácil’), Juan Zaizar (‘Cruz de Olvido’) ou, inevitavelmente, José Alfredo Jiménez (de ‘Las Ciudades’, com aquele murmurado “Te vi llegar y senti la presencia de un ser desconocido”, à embriagada ‘En El Último Trago’) mais não fiquem que um cancioneiro de sussurros. Chucho Valdés – a cumprir funções próximas das de seu pai, Bebo, no “Lágrimas Negras” de Diego Cigala – evita a caída no dramatismo drag de Lola Beltrán ou Lucha Villa e lança-se por uma lírica ponte suspensa entre Bill Evans e Frank Emilio Flynn.

21 de novembro de 2009

Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou "Volume Two: Echos Hypnotiques 1969-1979"

James Brown disse muitas coisas espantosas. E não se vislumbra uma leitura tão rigorosamente suspensa entre a contínua admiração e a permanente desconfiança quanto a da sua autobiografia. Ainda assim, restam ao fim de todos estes anos momentos de irresoluta perplexidade na sua interpretação, como aquele em que se refere à música africana revelando nada ter encontrado no continente negro que lhe permitisse reconhecer as suas raízes. Mais perturbante ainda será não lhe ter sequer servido de matéria para reflexão o repetido facto de – do Zaire à Nigéria – tudo o que por lá ouviu lhe parecer um eco distorcido da sua própria produção. Na verdade, ainda que ignorasse aquilo que a etnomusicologia do seu tempo caracterizava como um “eco de outro eco”, de nada valem as suas palavras face ao que provou em disco. E também porque não faltariam candidatos a demonstrar-lhe na prática a origem da ancestral força espiritual que tão bem evidenciava em palco e em estúdio, bastaria uma palavra sua para que dessas viagens tivesse levado mais que banhos de multidão e dinheiro de ditadores. A Poly-Rythmo, por exemplo, sempre que se dedicou ao jerk (expressão que qualificava temas tradicionais do vodun ‘modernizados’ ao jeito da pop ocidental) confirmou dominar a mesmíssima grandeza matricial do groove por si dilatado e, mais concretamente, igualar a modelar destreza polirrítmica do seu baterista, Clyde Stubblefield. E não se poderia imaginar mais eficaz banda para o acompanhar quando, em “Hell” (1974), cantava o que sabe qualquer homem no Benim: “a man has to go back to the crossroads before he finds himself”. Esta é, em sete anos, a quarta antologia consagrada à orquestra de Cotonou, a primeira a libertá-la dos fantasmas de Franco e Fela Kuti e a melhor a representá-la pela sua acção natural: na virtual dependência do “Padrinho do Soul”.

7 de novembro de 2009

Zanzibara 5: Hot In Dar – The Sound Of Tanzania 1978-1983

São hoje conhecidas as múltiplas manifestações culturais de uma Tanzânia então uniformizada pela propaganda. Talvez por isso – apesar de ser possível concentrar atenções na obra de Mlimani Park Orchestra, Dar International Orchestra e Vijana Jazz Band fazendo-a depender do patrocínio do regime – se liberte de constrangimentos políticos este quinto volume da série “Zanzibara” (irmã, na Buda, da mais prestigiada “Éthiopiques”). Porque esta nova era para a música popular de Dar es Salaam cruzava tradições tanzanianas com o que de mais significativo chegava do Zaire ou do Quénia sem que as elites se interrogassem quanto à sua legitimidade nacionalista. E foi esse impulso – a par da reabilitação do swing de tempos coloniais filtrado por uma apertada malha funk – que precipitou a explosão da musiki wa dansi, febre que durou até final dos anos 80 quando sintetizadores e caixas de ritmo substituíram instrumentistas. Mas aqui celebram-se ainda bandas com três dezenas de músicos capazes de espelhar em palco os mais graciosos gestos nas pistas de dança, até, por fim, entre espirais de guitarras eléctricas efervescendo como bolhas em bebidas gasosas e secções de sopro dialogando como claques rivais em bancadas opostas, se revelar um inesperado centro criativo para a África oriental.